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28.6.04

13º Domingo TC (C) 

A primeira coisa que me ocorre ao ler a leitura do Antigo Testamento é que Eliseu era um homem rico. Os pobres não lavram com juntas de bois — menos ainda com doze. Sendo rico, Eliseu não esbanja nem vive na preguiça e na opulência: toma bem conta dos seus bens. Ele próprio lavra com uma junta, ao pé dos seus trabalhadores. Excelente exemplo de empenho e responsabilidade.
E contudo Eliseu não se fecha sobre a vida que tem, nem pensa que as doze juntas de bois e a riqueza agrícola que isso denuncia são tudo na vida. E ao decidir introduzir mudanças nesta, da sua riqueza distribui ainda aos que com ele trabalhavam e dele dependiam. Não se esquece das suas obrigações de trabalhador, de (como diríamos hoje) patrão, de membro de uma família de quem se despede.

Penso que erraríamos se contrapuséssemos esta vocação de Eliseu às vocações com dificuldades do Evangelho de hoje. Jesus adverte o discípulo que se vai despedir da família contra os familiares que talvez tentassem dissuadi-lo de viver a sua própria vida e fazer aquilo a que efectivamente era chamado. Qualquer um de nós já ouviu opiniões de outras pessoas, do género: eu se fosse a ti… Essas opiniões podem ser bem intencionadas ou não ser, mas mesmo as bem intencionadas podem ser maus conselhos, podem ir contra aquilo que verdadeiramente era bom para nós. E podemos seguir essas opiniões alheias por ligarmos demais ao que tal pessoa nos diz, por não querermos arranjar problemas, ou por essa ser a maneira mais confortável de agir (e há mudanças que podemos querer fazer na nossa vida que, no curto prazo, não são confortáveis).

Mas não penso que Jesus tenha repreendido com as suas palavras a intenção do homem que o queria seguir, do mesmo modo que não repreendeu certamente a intenção de cuidar do pai do outro homem de quem o evangelista nos fala antes. Não sabemos as circunstâncias concretas desse homem, cujo pai estaria talvez ainda vivo, mas decerto doente ou de muita idade; talvez Jesus o avisasse de que apesar das suas responsabilidades não devia adiar o papel do Reino de Deus na sua vida. De facto, se procurarmos bem, encontramos sempre responsabilidades que podemos usar como desculpas para adiar o que é importante na vida.

A tentação de usar estes versículos para argumentar que Jesus quer que por causa deles deixemos de ligar à família, ao trabalho, à vida, a tudo o resto, é tentação habitual nas seitas. As seitas absorvem os seus membros por forma a serem tudo para eles; sugam-lhes a vida própria para se imporem em tudo. Os seus membros acabam por não ser mais pessoas, mas fantoches que agem não porque querem mas porque a seita os controla e enforma. («Ai de vós, escribas e fariseus, que perceorreis a terra e o mar para fazerdes um prosélito, e, depois de o terdes, o tornais duas vezes mais merecedor do inferno que vós!»)

As seitas que assim controlam a mente dos que caem nas suas garras não são só as seitas religiosas, embora, claro, as que argumentam torcendo os textos dos Evangelhos sejam normalmente as seitas pseudo-cristãs. Mas a tentação de retorcer as palavras do nosso mestre deste modo pode surgir também na Igreja. Os defeitos das seitas não estão, infelizmente, dela ausentes («Porque vês o cisco no olho de teu irmão, mas não reparas na trave que está no teu próprio olho?»). Pode haver a tentação de querer que os outros deixem de ligar à sua vida e às suas ideias para fins aparentemente religiosos, como, por exemplo, para ir a muitas missas ou muitas rezas, ou o desejo de que nas conversas se fale sempre duma maneira aparentemente muito piedosa e beata. O grande perigo disso é que à primeira vista o fim é pio e santo.

E isso traz-me à segunda leitura. Paulo escreve contra aqueles que achavam que os cristãos tinham de cumprir os inúmeros preceitos rituais da lei de Moisés. Afirma que não é preciso ser-se judeu para se ser cristão, e que não são os ritos e as observâncias que fazem que alguém seja justo aos olhos de Deus, que olha a coisas muito diferentes e mais importantes que ritos, práticas e cerimónias. Ora, não são só as cerimónias e observâncias da lei de Moisés que, em si mesmas, nada valem, e podem tornar-se uma prisão inútil. Pode haver a tentação de viver não uma Nova Aliança no sangue de Jesus mas uma versão recauchutada da Antiga Aliança, com o seu culto minucioso e ritual, agora apenas travestido de uma aparência cristã: de participar em muitas cerimónias e rezas e reuniões e cursos e celebrações e actividades e cenáculos e de supor que isso é que faz com que Deus ache que somos justos ou que isso é que faz a nossa vida valer a pena ou que isso é que é a salvação. Não é. É uma prisão como a lei de Moisés. É um «viver segundo a carne», como disse Paulo; um viver segundo uma aparência de piedade e de religiosidade que na verdade de cristão nada tem.

Sigamos pois o conselho do Apóstolo: «andai segundo o Espírito».

24.6.04

A tradição já não é o que era... 

Vi há dias, no programa 8º dia (que dá aos domingos de manhã) uma reportagem de uma povoação no norte que penso se chamava Serzedelo. Havia lá, durante o tempo pascal, uma Via Sacra (em latim, Via Crucis) feita com cruzes adornadas de flores.

Ora sucede que Serzedelo resolveu mudar a tradição. Como uma Via Sacra já é um bocado extemporânea no tempo pascal (é mais cerimónia de quaresma), resolveram mudá-la em Via Lucis, ou caminho de luz, baseando-se então as estações em 14 aparições de Cristo.

Para além disso, alguém se lembrou de pôr uma pequena estátua do Menino Jesus em cima de algumas cruzes, que, estando já floridas, se tornaram claramente símbolo não de morte mas de vida nova - presente nas flores e no menino.

Aliás, é típica de Portugal esta devoção a Jesus enquanto menino, patente também, por exemplo, no beijo ao menino por ocasião do Natal. Nesta procissão, a cruz tornou-se assim suporte, escabelo, pedestal para a vida nova de menino ressuscitado, ou de ressuscitado menino.

18.6.04

O Papa e a Inquisição 

«Em vez do testemunho de uma vida inspirada nos valores da fé», constata o Santo Padre, os cristãos em certas ocasiões ofereceram «o espetáculo de modos de pensar e atuar que eram verdadeiras formas de antitestemunho e de escândalo».

Esta é parte desta notícia, que se refere à publicação das Actas do Simpósio Internacional “A Inquisição”, celebrado ao final de Outubro de 1998, que fazem um estudo histórico da inquisição (a notícia vem pela agência noticiosa zenit)

Não é mau, ouvir o Papa dizer estas coisas. Mas quanto tempo esperámos pelas actas? 6 anos. Quanto tempo esperámos para pedir perdão da Inquisição? 170 anos, se contarmos a partir do encerramento do último tribunal, ou mais de 500, se contarmos a partir da fundação.

Quanto tempo teremos que esperar para os leigos e as mulheres tenham um papel co-responsável na igreja? Para que o Vaticano não seja um estado medieval? Para que os escândalos, como o da pedofilia, sejam plenamente assumidos? Para que...?

Talvez 6 anos? Talvez 100? Talvez...?

12º domingo do tempo comum 

Desta vez, Cristo diz, no evangelho que "Quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la, mas quem a perder por minha causa, há-de salvá-la", isto depois de anunciar aos discípulos a sua cruxifixão próxima.

Ora, como bom matemático, não posso deixar de ver aqui, à primeira vista, uma contradição - até uma dupla contradição. No entanto, saber exactamente qual é a vida que se perde e a vida que se ganha é talvez uma das coisas mais importantes da vida de um cristão.

Suponho então que a vida que se ganha, na primeira frase, é aquela que se perde na segunda: será uma vida estritamente baseada nas preocupações do mundo, uma vida limitada e sem ideais, uma vida mundana e egoísta, de alguém que se nega, que se recusa a dar-se.

Por contraste, a outra vida, a que se perde na primeira frase e se ganha na segunda, é justamente o contrario: é uma vida de alegria e partilha, uma vida em comunidade com os outros e com Deus Pai, uma vida de irmãos e irmãs. E essa é a vida eterna: a que se poderá gozar depois da morte, como Cristo depois da crucifixão; a que se pode gozar já agora, por Cristo nos ter feito filhos do seu Pai. E é essa vida que exige que se passe pela cruz, que, tal como com Cristo, nos é imposta pelos poderes pecaminosos deste mundo, mas que leva sempre à vida nova.

17.6.04

No Público de hoje, Jorge Miranda escreveu sobre Sousa Franco. O texto versa em grande medida o papel que este teve enquanto católico numa série de posições e encontra-se aqui.

11.6.04

Santo António 

Em Lisboa, celebra-se este domingo Santo António, seu padroeiro. Um dos salmos da missa diz que «A boca do justo proclama a sabedoria». Se de facto isso se relaciona com a vida de Santo António, que foi conhecido pela sua pregação, diz-nos também muito a nós. Tiago, na carta que escreveu e que se acha na Bíblia, diz acerca da boca: «Com ela bendizemos a Deus Pai, e com ela amaldiçoamos os homens feitos à imagem e semelhança de Deus» (3, 9). Esta contradição pode encontrar-se também em nós, e não só em palavras, mas também em acções. É outra das contradições contra as quais Tiago adverte os cristãos: para não dizermos que temos fé, sem agirmos em conformidade.

É que podemos rezar muito pedindo perdão pelos nossos pecados e com as nossas palavras ásperas e sem compreensão ferirmos os outros que nos rodeiam - e Jesus comparou isso ao caso de um servo a quem o rei tinha perdoado uma grande dívida, mas que não queria perdoar uma pequena dívida que outro tinha para com ele. Já no livro dos provérbios podemos ler: «a resposta desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira» (15, 1); e ainda «nas muitas palavras não falta o pecado, mas o que modera os seus lábios é sábio» (9, 19). Seria bom que aprendêssemos a falar como Jesus nos recomendou: «sim, sim, não, não», em vez de dizermos um sim a Deus para depois o negarmos quando falamos com os que nos rodeiam.

No Corpo de Deus ouvi um presbítero afirmar que o nosso amor a Deus se pode aferir pela nossa devoção ao Santíssimo Sacramento. Estritamente falando, pode ser verdade, se levarmos em conta o que disse um bispo: que não podemos prestar culto nenhum verdadeiro à presença do Senhor na Eucaristia se não o adorarmos e lhe prestarmos culto na pessoa dos pobres em quem o rosto de Cristo se vê. Seria uma contradição que revelaria onde está verdadeiramente o nosso coração.

De Santo António, além das belas homilias, cheias de palavras complicadas, raciocínios complexos e interpretações alegóricas da Bíblia (que hoje não passariam pela cabeça de ninguém), ficou também a fama de alguém afável e simpático, que levava uma vida simples. Nele colaboraram as palavras com as acções.

7.6.04

A Má Educação 

Este é o título do último filme de Pedro Almodóvar, em que boa parte da intriga se baseia num caso de pedofilia num colégio interno religioso espanhol - caso aliás baseado nas experiências pessoais de Almodóvar. Apesar de o realizador poder ter caído no facilitismo de fazer disso o facto principal do filme, demonizando a igreja e os padres, ele não o faz: não só o argumento vive de muitas outras ocorrências, como os padres são em geral apresentados como pessoas normais, e até simpáticas. No fim do filme, o próprio padre pedófilo não chega a ser a figura mais sombria, chegando até o realizador a lançar sobre ele um olhar quase de pena.

Mas o filme não deixa de por em destaque estes problemas gravíssimos da igreja de hoje: primeiro, a pedofilia, e segundo (mais grave a meu ver), a complacência da hierarquia com essa existência, através da negação e do encobrimento, que, em vez de assumir as coisas, as abafa, trocando padres de sítio quando a situação se torma insustentável, ou fazendo coisas como a que vem na notícia do Público de domingo 30 de Maio que aqui cito:

O cardeal norte-americano Bernard Law, ex-arcebispo de Boston que se demitiu na sequência dos escândalos de pedofilia do clero, terá direito à nacionalidade vaticana, depois de a sua nomeação para arcipreste da basílica de Santa Maria Maior, foi anunciado anteontem em Roma.

Law, com 72 anos, acusado de ter cometido erros na gestão do caso dos padres pedófilos nos Estados Unidos, demitiu-se em Dezembro de 2002, de modo a devolver aos fiéis americanos a confiança na hierarquia católica.

Durante mais de um ano, o prelado, que desejou uma "saída discreta", tem vivido entre um convento nos Estados Unidos e longas estadias no Vaticano, em casa do seu amigo arcebispo James Harvey, prefeito da Casa Pontifícia.

Na sequência da demissão, quinta-feira passada, do cardeal italiano Carlo Fruno, da gestão da basílica romana de Santa Maria Maior, o Papa confiou a Bernard Law esta responsabilidade. O cardeal titular deste cargo tem, por inerência, direito a passaporte da Santa Sé.


Isto levanta também a questão: será que, em face destes casos, faz sentido insistir em que os padres sejam necessariamente celibatários? Mas isso dá outro post.

4.6.04

Santíssima Trindade (actualizado) 

Depois do tempo pascal, vêm alguns domingos de festas especiais. Este é o primeiro, em que se festeja a Trindade, que, tendo sido um pomo de discórdia nos primeiros tempos do cristianismo (e o Duarte já publicou aqui no blog algumas coisas a esse respeito), é também, a meu ver, uma das coisas mais belas do cristianismo.

Ao longo da história das religiões comparadas, vemos que em geral o monoteísmo vai ganhando lugar ao politeísmo. Ora, ao falar de Trindade, é preciso por um lado, não criar três deuses, e por outro, não dissolver tudo num só. Várias tentativas foram feitas no sentido de definir as coisas o melhor possível, caindo ora no modalismo (que dizia que as três pessoas eram maneiras diferentes de Deus se manifestar) ora no politeísmo (de haver três deuses). para resolver a questão, passou-se a distinguir entre essência, ou substância (que é uma) e pessoas (que são três).

Recentemente, um teólogo muito conhecido, e fulcral no Concílio Vaticano II, Karl Rahner, propôs uma interpretação que pode parecer modalista mas não é no fundo: que a Trindade económica é a Trindade imanente, e a Trindade imanente é a Trindade económica — aqui entenda-se "económica" no sentido da economia da salvação. Quer isto dizer, grosso modo, que, se Deus se apresenta como três é no sentido de melhor poder salvar o homem, tomando em cada momento o papel necessário, como um amigo, que é ora companheiro, ora conselheiro, ora isto, ora aquilo. Parecendo isto uma espécie de modalismo (e tendo sido criticado já como tal) parece-me uma doutrina lindíssima, que arranca a aridez e a frieza das definições abstractas e mostra Deus como Cristo o mostrou: fazendo de tudo para salvar amorosamente a pessoa humana, que é capaz de reconhecer e aceitar essa salvação.

Assim, Deus é Pai e criador, e Filho irmão e redentor, e Espírito amoroso e revivificante para melhor chegar a comunicar-se às pessoas humanas, para seer em cada momento aquilo que elas precisam, para que a sua salvação chegue de todas as maneiras possíveis.

Pode ler-se aqui mais sobre a doutrina de Rahner a este respeito (ver o ponto 4.2.3)

3.6.04

Choque de religiões 

Muitas vezes fala-se dos recentes conflitos, seja do terrorismo, seja da guerra contra ele, seja do que se passa no médio oriente, como resultando de um conflito de civilizações ou de religiões - isto depois de várias declarações em contrário de vários líderes religiosos, incluindo o Papa. Ora o que sucede, a meu ver, é que há fundamentalistas de cada uma dessas religiões que, de uma maneira ou de outra, conseguiram poder suficiente para desencadear conflitos a grande escala. Acerca do que se passa, por exemplo, com a chamada "direita cristã" do governo dos Estados Unidos, leia-se a crónica de Sarsfield Cabral, saída hoje no DN.

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