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26.7.04

16º domingo do tempo comum 

Antes de mais, as minhas desculpas pelo atraso, de mais de uma semana, deste comentário.

As leituras deste domingo falam-nos, de uma forma claríssima, do valor do acolhimento daqueles que passam. Na leitura do Antigo Testamento, é Abraão que acolhe três viajantes, que lhe anunciam o nascimento de um filho, não de um filho qualquer, mas do filho prometido, do qual sairia a sua numerosa descendência. No Evangelho da semana passada, Cristo dá significado à expressão "o teu próximo": é a pessoa que, por acaso, e não por qualquer ligação de parentesco, de amizade, ou de nacionalidade, se encontra próxima de nós. Hoje, ele mostra como se deve acolher esse próximo: como se esse próximo fosse o próprio Deus.

Este é um motivo mitológico que aparece em muitas religiões: o deus disfarçado de viajante, de mendigo, de pessoa que passa e pede alojamento. É Deus que se faz dependente da pessoa humana, que se disfarça, aqui não para testar a hospitalidade da pessoa, mas, com diz o Livro dos Provérbios (8, 31), porque tem prazer na nossa companhia, e porque nos quer dar a sua vida, bastando para isso que lhe abramos a porta, e que, nessa altura, saibamos que as preocupações mundanas da casa arrumada, do campo lavrado, até das doenças e da morte, podem esperar.

E, com Abraão, a recompensa foi clara pelo acolhimento dos estrangeiros. Com Marta e Maria, a recompensa é menos clara: é a própria presença de Jesus. Lembro-me do filho mais velho da história do Filho Pródigo, que protesta por o Pai nunca lhe ter feito uma festa. O Pai responde-lhe "tudo o que é meu é teu", isto é, a tua recompensa, a tua festa, deve ser o facto de me teres a mim, à minha companhia, permanentemente. E essa é, hoje, a nossa recompensa por acolher e passar tempo com Jesus, em oração, ou nos próximos que passam: a própria companhia dele.

9.7.04

15º Domingo do T.C., ano C 

Há duas semanas houve ordenações nos Jerónimos e fui cantar no coro. Cantámos alguns textos do Novo Testamento, como «Sou ministro do Evangelho pela graça do Senhor» (Efésios 3, 6-7) durante a ordenação dos diáconos; e vários do Antigo Testamento, como por exemplo: «Eu cuidarei das minhas ovelhas, diz o Senhor. Suscitarei um pastor que as apascente. Eu, o Senhor, serei o seu Deus.» (Ezequiel 34, 22-24)

Não é que seja errado cantar-se textos assim nas ordenações, mas há o risco de se supor que «o pastor que as apascente» é uma expressão genérica para qualquer padre, para qualquer membro do clero. Para nós, que cremos em Jesus, não é: esse pastor é Jesus. Melhor ainda, poderá pensar-se: pois não deve o padre ser outro Cristo? E não age ele «in persona Christi»? Sim, o padre deve ser outro Cristo, e outro Cristo deve ser todo aquele que é baptizado em seu nome, padre ou não. «Configurados com Cristo na morte...», assim oramos numa Oração Eucarística do Rito Romano (aliás, ora um presbítero, em nome de toda a assembleia que celebra a Eucaristia); fazemo-lo por aqueles que já morreram, mas nós também devemos considerar-nos «mortos com Cristo para o mundo» (Colossenses 2, 20): mortos pela morte simbólica que é o baptismo, para vivermos não como mortos, mas como ressuscitados: «vivos para Deus em Jesus Cristo nosso Senhor» (Romanos 6, 11). E se o padre na missa repete o que fez Cristo, repete-o aliás a assembleia toda, que é quem celebra, como diz o Catecismo da Igreja Católica (§ 1140).

Na verdade, havia no Antigo Testamento, entre o povo do Senhor, clara distinção (ainda que nem sempre respeitada, nem desde sempre, nem em todo o lado) entre aqueles que se dedicavam a funções sacerdotais e aqueles que o não faziam. Dentro da tribo de Levi, havia clara distinção entre os que eram sacerdotes e os que não eram. Quem não era sacerdote, para se relacionar com Deus, dependia portanto desses intermediários sacerdotais humanos. E agora? No Novo Testamento, os sacrifícios da lei antiga acabaram; há um só sacrifício, o de Jesus, perfeito, único e irrepetível; e ele mesmo é por isso o único sacerdote. No novo povo do Senhor, tirado de entre todos os povos da terra, não há portanto distinções, nem mediações senão a dele: «há um só mediador entre Deus e os homens: o homem Jesus Cristo» (1 Timóteo 2, 5).

Nós, mortos e ressuscitados simbolicamente com ele, partilhamos não só dos frutos da sua vitória sobre a morte e o pecado: participamos também do seu sacerdócio, e podemos «oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo» (1 Pedro 2, 5). Isto leva-nos a um ponto de doutrina muito esquecido, que é o de que há uma diferente participação no sacerdócio de Cristo por parte daqueles que são ordenados presbíteros ou bispos, mas essa diferença não é uma questão de grau ou intensidade. Esses «sacerdotes» (como se costuma chamar-lhes) não são MAIS sacerdotes que os outros cristãos, são-no de modo diverso. Não é questão de uns sermos mais que os outros: «Vós, porém, não queirais ser chamados Mestre, porque um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos. E a ninguém na terra chameis vosso pai, porque um só é o vosso Pai, o qual está nos céus.» (Mateus 23, 8-9).

Também se cantou um cântico cuja letra dizia: «Bendito seja Deus que nos visita: no seu povo sucita profetas à imagem do seu Filho. Bendito seja Deus, o nosso sol nascente, que brilha refulgente nos dons do seu amor. No dom do sacerdócio exulta a Igreja santa e com Maria canta: bendigo o meu Senhor.» Uma vez mais, não há nada de errado com a letra em si, mas com o que ela não diz e tenta deixar subentendido. O profeta que havia de vir, que alguns pensaram que fosse João Baptista (João 1, 21), foi Jesus Cristo (Lucas 13, 34). Nós participamos também com Cristo do seu carácter profético, e somos chamados a ser profetas que anunciam as boas notícias daquele que revelou o rosto de Deus (Mateus 23, 34; João 1, 18): todos, ordenados ou não. O dom do sacerdócio é de facto um dom de Deus, que nos é dado pela participação na vitória de Cristo, e isto tanto vale para o sacerdócio comum dos fiéis, como para o ministerial (dos presbíteros e bispos); o que o cântico pode é fazer crer que só estes são sacerdotes, só estes recebem esse dom de Deus, só esses são profetas, só por esses havemos de bendizer o Senhor.

Tudo isto corre o risco de nos fazer viver como se tivéssemos voltado ao Antigo Testamento e houvesse templo e sacrifícios e sacerdotes e mediadores humanos e imperfeitos. Não: como disse Jesus, «eis que faço novas todas as coisas» (Apocalipse 21, 5). Acabou-se esse sistema de intermidários imperfeitos. Só ele é cabeça da Igreja, como diz a epístola do domingo de hoje: não há muitas cabeças, umas visíveis e outras invisíveis, umas mais poderosas que outras. Nele é que todas as coisas subsistem em unidade: a Igreja é una por causa dele, não por causa da sua estrutura humana, da hierarquia, da organização, do direito canónico, da autoridade eclesiástica. Nele é que reside a plenitude: não tentemos vê-la ou encontrá-la em reuniões de culto, por muito excelentes que sejam, nem em outros irmãos nossos na fé, por muito bons discípulos que sejam; a Liturgia terrestre é um meio, não um fim, e a perfeição das criaturas imagem, como que reflexo num espelho (2 Coríntios 3, 18; 1 Coríntios 13, 12), da glória de Deus que se manifestou em Cristo. Jesus é que reconciliou tudo nele, estabelecendo a paz pela sua cruz: mais ninguém foi crucificado por nós, nem padeceu como propiciação pelos nossos pecados. Àqueles cristãos que se dividiam em seitas e seguiam líderes humanos, perguntou o apóstolo Paulo: «Cada um de vós diz: eu sou de Paulo, e eu de Apolo, e eu de Cefas, e eu de Cristo. Está Cristo dividido? Foi Paulo crucificado por vós? Ou fostes vós batizados em nome de Paulo?» (1 Coríntios 12, 13)

Portanto, não tentemos substituir na nossa fé Jesus, «a imagem invisível de Deus».

2.7.04

14º domingo do TC 

EVANGELHO – Lc 10,1-12.17-20

Naquele tempo,
designou o Senhor setenta e dois discípulos
e enviou-os dois a dois à sua frente,
a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir.
E dizia-lhes:
«A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Pedi ao dono da seara
que mande trabalhadores para a sua seara.
Ide: Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos.
Não leveis bolsa nem alforge nem sandálias,
nem vos demoreis a saudar alguém pelo caminho.
Quando entrardes nalguma casa,
dizei primeiro: ‘Paz a esta casa’.
E se lá houver gente de paz,
a vossa paz repousará sobre eles:
senão, ficará convosco.
Ficai nessa casa, comei e bebei do que tiverem,
que o trabalhador merece o seu salário.
Não andeis de casa em casa.
Quando entrardes nalguma cidade e vos receberem,
comei do que vos servirem,
curai os enfermos que nela houver
e dizei-lhes: ‘Está perto de vós o reino de Deus’.
Mas quando entrardes nalguma cidade e não vos receberem,
saí à praça pública e dizei:
‘Até o pó da vossa cidade que se pegou aos nossos pés
sacudimos para vós.
No entanto, ficai sabendo:
Está perto o reino de Deus’.
Eu vos digo:
Haverá mais tolerância, naquele dia, para Sodoma
do que para essa cidade».
Os setenta e dois discípulos voltaram cheios de alegria, dizendo:
«Senhor, até os demónios nos obedeciam em teu nome».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago.
Dei-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões
e dominar toda a força do inimigo;
nada poderá causar-vos dano.
Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem;
alegrai-vos antes
porque os vossos nomes estão escritos nos Céus».


É uma leitura longa, a deste domingo, e não a vou comentar toda. Sendo uma das leituras mais claras do evangelho, é talvez uma das que causa maior escândalo, quer aos católicos, quer aos não católicos, quando comparam o despojamento e o desapego que Jesus proclama aqui com o amor à riqueza e ao fausto que existe na igreja Católica.

Esta é também uma leitura que alguns pregadores usam para convencer os seus ouvintes cristãos que o seu dever é manter a máquina eclesial a trabalhar: "A seara é grande e os trabalhadores são poucos", de modo que toca a pôr mãos à obra. E rapidamente. Ora, sucede que, quando estes discípulos saíram a proclamar o reino, já tinham tido um tempo de "estágio" com o próprio Jesus, e, mais do que tudo, foram designados por ele. Como naquele tempo, também agora Jesus escolhe os que quer ver a evangelizar, e por vezes, não escolhe aqueles todos os que os senhores padres gostariam - e aí há a tentação de eles darem uma mãozinha, convencendo as pessoas que são pau para toda a obra, e que é Jesus que o quer.

Estes chamamentos (a pregar, ou a fazer outra coisa qualquer) são sempre feitos ao coração do fiel, e devem suscitar um assentimento feliz por parte da pessoa chamada, ainda que essa pessoa se apreceba das dificuldades. Como me dizia um amigo meu seminarista: "se não te sentes bem a fazer uma coisa, mesmo que sejas muito bom nisso, é porque não é isso que Deus te está a chamar a fazer".

E às vezes há mesmo chamamentos que parecem um bocadinho contraditórios, como este que aparece no fim da leitura: deitar fora até o pó das sandálias, se não se fôr bem recebido. Este foi exactamente um chamamento que eu segui há pouco: senti há pouco tempo uma rejeição efectiva, em relação à qual não pude fazer outra coisa senão meter pés a caminho para fora da minha paróquia. Isto em contradição com quase tudo o que me foi ensinado por parte da hierarquia - que é sempre preciso buscar consensos, pontos de equilíbrio, para trabalhar em igreja; no fundo, que a vontade de Deus é que eu seja um apparatchik. Nesta leitura, torna-se claríssimo que não é assim.

Finalmente, uma observação relativamente ao respeito à consciência humana: Cristo manda os seus discípulos respeitar escrupulosamente as consciências daqueles que rejeitam a sua mensagem. Quanto mais desejaria ele respeitadas as consciências daqueles que o seguem em espírito e verdade...

Petição 

neste endereço uma petição para pedir uma reforma da Igreja Católica, num sentido que me parece notável, pela maneira incisiva com que localizam os problemas actuais.

1.7.04

Onde pára Deus? (parte 2) 

Em geral, se compararmos a evolução política, social, económica, tecnológica que a Europa proporcionou ao mundo, a evolução religiosa tem ainda muito muito caminho a percorrer. E além disso, quer se queira quer não, as maiores perversões da religião (acerca de algumas, o Papa já pediu perdão) tiveram origem europeia: quer as mais violentas, como a inquisição, as conversões à força, ou mais recentemente a pedofilia; quer as ideologicamente mais repugnantes, como a venda das indulgências, ou mais recentemente o conluio com poderes políticos totalitários - e isto vem a ser mais escandaloso ainda por vir de uma organização que pretende divulgar uma doutrina de amor.

Isto para além de pecados menos vistosos, mas mais disseminados. Muita gente, padres e leigos, encararam a religião como um substituto da consciência individual - alguns chegam a achar-se no dever de serem pequenos ditadores, à medida do poder que têm, no sentido de educar os fiéis e as consciências. mesmo que não se chegue aí, há por vezes a tentação de dar as respostas todas aos anseios das pessoas, esvaziando-as de espírito crítico e de responsabilidade de decisão - e na Europa, mais do que em qualquer outro sítio, a personalidade humana individual é tida em grande consideração.

Talvez seja por causa disso que a sociedade europeia olhe assim com tanta desconfiança para a Igreja Católica - quer para os comportamentos, quer para as ideias. Parece-me que o problema é tanto aquilo que se fez de mal, como o progresso de ideias que ainda se resiste a fazer.

Parte da resposta a este problema é dada no artigo deste domingo do Frei Bento Domingues, quando diz que o Cristianismo é mais do que uma herança! É preciso ver que, não só não conseguimos manter essa tradição devidamente clara, como também ainda não a descobrimos totalmente. A mensagem cristã que existe na Europa, neste momento, ainda reflecte muitos dos pecados europeus, e tem muito que andar até ser fiel às palavras de Cristo - lembro palavras como "Ama os teus inimigos e ora pelos que te perseguem", ou a história do homem rico com Lázaro á porta. Não, ainda não temos muito de cristão para mostrar, temos ainda muito de cristão para descobrir! Mais uma vez, precisamos de pessoas que saibam renovar o pensamento e o agir cristão sem o reduzir a chachadas facilitistas de consumo e absorção rápida, para as massas - como o fazem as seitas e certos movimentos dentro da Igreja Católica, que acham que inculcando comportamentos, hábitos, e criando um sentido falso e superficial de comunidade e alegria estão a trazer mais e mais gente para Cristo, sem eles próprios saberem quem esse Cristo é. Não, a mudança há-de fazer-se pela conversão lenta, pensada, rezada, crítica; pela descoberta e pela reciclagem dos conteúdos da fé, por uma formação, uma catequese digna desse nome, que não ensine só banalidades e tenha festinhas simpáticas, por uma redescoberta dos pensadores cristãos do século XX.

Onde pára Deus? (parte 1) 

Este é o título de um artigo da revista "Sábado" de 18 de Junho, referente à dificuldade de fixar o preâmbulo da Constituição europeia, que afinal não chega a mencionar as raízes cristãs da Europa, afirmando apenas que os princípios da União Europeia se inspiram na "herança cultural, religiosa e humanista da Europa".

A esse propósito, a notícia refere um estudo apresentado por Jocelyne Cesari, investigadora senior do CNRS, de Paris, e da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, em que se conclui que "ao contrário do resto do planeta, onde a religião tende a ser percebida como algo que desempenha um papel positivo na sociedade, a Europa «é a única parte do Mundo que apresenta uma hostilidade generalizada em relação à religião»".

Parece que na Europa já ninguém liga a Deus... Ou talvez não. Na verdade, muita da teologia renovadora, apresentada e assumida no concílio Vaticano II teve origem europeia, nomeadamente na Alemanha e na Holanda. O problema... problema é que, a esses teólogos renovadores (e mais tarde a outros, latino-americanos), puseram-nos na prateleira donde os tinham tirado mal o concílio acabou, e a teologia e as vivências cristãs que existem hoje na Europa reflectem, mais do que noutras partes do mundo, o sentimento e as ideias da hierarquia conservadora de Roma. Há quem goste, claro, e há quem se habitue, mas as ideias não deixam de ser retrógradas. [Continua...]

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