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30.12.03

Natal, o que é? 

Nestes tempos, acontece muito as pessoas ligadas a meios de igreja virem pôr coisas em pratos limpos, dizendo que o Natal é a festa do nascimento de Cristo, e não apenas a festa da família, ou da paz, ou da concórdia, e que isso são maneiras de as pessoas celebrarem uma festa originalmente cristã, desvirtuando-a.

Ora, sucede que os cristãos fizeram exactamente isso: pegaram no solstício de inverno, e aproveitaram o simbolismo da luz do dia que aumenta a partir desse solstício, e acharam que essa era uma boa altura par a celebrar o nascimento de Cristo. Ou seja: pegaram numa festa que já havia, e mudaram-lhe o significado segundo as suas crenças. Parece um bocadinho mal agora pedir às pessoas não cristãs que não façam o mesmo, não é?...

E já agora, aqui fica um texto do Público em que o padre e poeta José Tolentino de Mendonça analisa esses vários significados que se dão a esta época do ano - e já agora, esse senhor contribui também para o blogue intrusos.

29.12.03

Adora a Deus 

Outro dia, falando com um amigo meu, dei-me conta que há muitas devoções entre os católicos de hoje que escondem a verdadeira doutrina cristã. Isso é pena, e só faz desejar que aumente o amor pela Liturgia e pelo culto litúrgico.

Isto não é somente por a Liturgia ser uma oração oficial da Igreja. Triste espartilho seria esse, em seguidores de um Mestre que disse que em Espírito e verdade é que Deus há-de ser adorado. Nem por a Liturgia ser muito antiga e portanto venerável. A forma exterior da Liturgia já mudou muito, imenso mesmo, seja na celebração da Missa, dos sacramentos, da Liturgia das horas (e mesmo no período em que menos mudou, entre os concílios de Trento e Vaticano II, mesmo assim mudou, e mais do que muitos, que nunca estudaram o assunto, supõem), e Jesus também comparou o escriba instruído no Reino dos Céus a um pai de família que da dispensa tira coisas velhas e novas: também a Liturgia nos vai apresentando coisas velhas e novas.

O culto litúrgico, porém, mostra-nos claramente muitas verdades de fé. Queria só mencionar uma característica: o culto litúrgico é sempre dirigido a Deus. Por vezes, nos elementos mais acessórios e menos centrais, dirigimo-nos a outras pessoas: inclinamo-nos perante os membros da hierarquia, ou invocamos a Mãe de Deus ou outros santos... Mas mesmo nesses casos o culto é ultimamente dirigido a Deus. As orações da missa, para dar um exemplo, são-lhe sempre dirigidas a ele.

O culto é dirigido a Deus na trindade das suas pessoas, e, por um fenómeno chamado apropriação, em especial à pessoa do Pai. Cristo desempenha sobretudo o papel de sacerdote e mediador entre nós e Deus. E o Espírito Santo é quem ora em nós com palavras inefáveis, que as orações litúrgicas tentam transmitir, mas jamais conseguem com perfeição. Isso é muito claro na doxologia final do Cânon Romano: «Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo...»

(Parêntesis. Na alta Idade Média as orações da missa eram mesmo quase todas dirigidas ao Pai. Parece que no Rito Romano só havia, em centenas de orações, duas colectas do Advento que se dirigiam a Cristo. Depois o número de orações a Cristo começou a crescer, e hoje já há muitas orações colectas, orações sobre as oblatas e orações de pós-comunhão dirigidas a Cristo. São aquelas que em português terminam com: vós que sois Deus com o Pai... As que se dirigem ao Pai terminam com: por nosso Senhor Jesus Cristo..., ou com: ele que é Deus convosco...

Mesmo assim, até ao Vaticano II não havia uma única oração sacerdotal da missa que não fosse dirigida ao Pai. A oração «Senhor Jesus Cristo, que dissestes aos vossos apóstolos» era proferida em voz baixa como preparação privada do padre para a comunhão, segundo a opinião de muitos liturgistas. Com a reforma ordenada pelo último Concílio, passou a ser proferida em voz alta, e é mais duvidoso que não seja uma oração sacerdotal. Essa oração até esteve para ser abolida ou deixada só em algumas missas, mas o papa Paulo VI é que quis que ficasse argumentando que se devia orar pela unidade da Igreja em todas as missas. Mesmo assim, essa oração é caso único. Tirando isso, no ordinário da missa, hoje em dia, tudo o que é dito em voz alta é sempre dirigido ao Pai. Fim do parêntesis.)

Existem tantos ensinamentos que isto nos pode dar! Assim vemos como somos todos uma grande família nascida daquele de quem Jesus disse que é o único Bom. E assim na Liturgia se cumpre a ordem que o anjo deu a João: «Eu sou só um servo como tu, como os teus irmãos, como os profetas e como todos os que guardam estas palavras. Adora a Deus.» (Ap 22, 9)

Sagrada Família 

As leituras do Natal e da sua oitava mostram-nos como Deus se deu a conhecer. «Nunca ninguém viu Deus», diz claramente o evangelho da missa do dia de Natal. «O seu Filho único é que nos deu Deus a conhecer.» Sim, olhando para Jesus podemos ver Deus, porque Jesus, esse homem extraordinário, é Deus feito homem.

Ao conhecermos Deus, naturalmente que algo na nossa vida muda. A segunda leitura da Festa da Sagrada Família está repleta de conselhos extraordinários. Será que nós nos perdoamos mutuamente, como Deus nos perdoou em Cristo? Será que temos em nós a misericórdia, a humildade, a bondade, a paciência? Será que tudo o que fazemos reflecte uma acção de graças a Deus por intermédio de Cristo?

Os conselhos da Bíblia nunca são, por assim dizer, um manual de instruções. Na parte final da leitura ouvimos que os filhos devem sempre obedecer aos pais, mas bem sabemos que há algumas ocasiões em que é justificado que o não façam. Os pais não devem exasperar os filhos, é certo, mas isso não quer dizer que não se castiguem as criancinhas em certas ocaisões (de pequenino é que se torce o pepino). Como isto, muitas coisas que se lêem na Bíblia: é que as circunstâncias concretas de cada caso fazem com que a aplicação dos princípios gerais (misericórdia, bondade, mansidão, paz, etc.) de que falava o pricípio da leitura não seja sempre óbvia. Também a descrição da vida conjugal do final da leitura é datada (sobre esse assunto, o comentador da revista Celebração Litúrgica diz muito sabiamente que a enumeração não é exaustiva, porque a esposa tambémd eve amar o marido que também deve ser submisso à esposa -- e não só as recíprocas!).

E contudo não podemos achar que, visto que nem sempre é óbvio o que devemos fazer numa circunstância concreta, então pronto, é tudo igual. Lucas, no Evangelho e nos Actos, passa o tempo todo a pôr uma data de gente a perguntar a Jesus e aos Apóstolos: o que devemos fazer? As respostas nem sempre são iguais. Jesus dumas vezes queria que o pessoal fosse com ele, doutras disse antes: volta para casa. Mas em todas as circunstâncias há uma ou mais opções pelas quais se pode dar graças a Deus por Jesus, como recomenda Paulo.

26.12.03

Dia de Natal 

Não sei se me cabia a mim ou ao Duarte fazer o comentário hoje, mas como ele não disse nada, aqui vai o meu. É um texto de Meister Eckhart.

“Onde é que nasceu esse Rei dos Judeus”? Vejamos então onde esse nascimento tem lugar. Ele tem lugar na alma, exactamente como na eternidade e sem diferença, pois é o mesmo nascimento, e ocorre na essência, no centro da alma. Acarinha em ti próprio o nascimento de Deus, e com ele toda a bondade e conforto, todo o êxtase, realidade e verdade serão tuas. É a alma que está especialmente preparada para o nascimento de Deus, e assim este acontece exclusivamente na alma, onde a criança do Pai é concebida no seu centro, no seu mais íntimo recanto, onde nunca nenhuma ideia luziu.

24.12.03

A penalização do aborto 

No jornal Correio da Manhã surgiu no fim de semana passado uma sondagem onde perguntaram a várias pessoas se concordavam ou não com a penalização do aborto, isto é, se as mulheres que abortam devem ou não ser multadas ou presas. Note-se que esta questão, a da penalização, é diferente da da legalização - a primeira diz respeito ao que se deve fazer com a mulher que aborta, a segunda, se se deve permitir legalmente o aborto, ou não, em certas circunstâncias.

Nessa sondagem, cerca de 70% dos católicos praticantes se mostraram contra as penas civis (multa ou prisão) da mulher que aborta. O que pensa então "a Igreja Católica" da despenalização - aquilo que dizem os bispos e a Cúria, ou aquilo que acham os fiéis? O que é, afinal a "Igreja Católica"?

21.12.03

José Ferreira Superstar 

O prior de Belém, José Manuel Ferreira, teve este fim-de-semana honras de primeira página no Expresso, por causa de um concerto da classe de violinos da Orquestra Metropolitana de Lisboa que teve lugar nos Jerónimos. A notícia, que remetia para um artigo da revista "Actual", foi a respeito de algumas músicas censuradas pelo citado pároco, e que tiveram de ser retiradas do programa por, segundo as directivas da Santa Sé, serem demasiado profanas para o Mosteiro dos Jerónimos. Entre outras, tiveram que ser retiradas as músicas "Os Patinhos" e "O Balão do João".

Eu estive lá, e, apesar dos pesares, posso afirmar que o concerto foi uma alegria.

19.12.03

Poema de Natal 

Proclamarei aquilo que Deus disse.
De facto, o Senhor prometeu paz
para o seu povo, para os seus fiéis
e para todos os que se voltam para ele com confiança
Sim, a sua ajuda está sempre perto dos que o honram
e a sua glória habitará na nossa terra

O amor e a verdade se encontrarão;
a justiça e a paz se beijarão.
A verdade brotará da terra
e a justiça descerá do céu.
O próprio Senhor nos trará a chuva
e a nossa terra dará o seu fruto.
A justiça seguirá diante dele,
e a rectidão, no rasto dos seus passos.

4o Domingo do Advento 

EVANGELHO - Lc 1,39-47

Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direcção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.


Queria apenas salientar duas pequenas coisas desta leitura. Primeiro, que estando Maria grávida de Jesus — e provavelmente bastante assoberbada por toda a situação, pois tudo indica que ela teria consciência que aquele filho que ela ia ter não era um filho qualquer — mesmo assim, não se deixou fascinar consigo própria e com a sua situação, e foi "apressadamente" ter com a prima, para a ajudar com as coisas do bebé dela, que nasceria primeiro.
A outra coisa é o pormenor de ter sido o filho, não nascido, de Isabel, que reconheceu a presença de Cristo junto dele, mais do que a própria Isabel. Cristo virá a dizer que apenas aqueles que forem como crianças entrarão no Reino dos Céus, e esta situação ilustra bem essa primazia dos pequenos. Aqui, é uma criança ainda não nascida que é capaz de manifestar alegria pela proximidade de Cristo.

18.12.03

Sobre o aborto (notícias várias, actualizado) 

Surgiram hoje várias notícias no público sobre o assunto, toda a secção Destaque é sobre o assunto. Saliento a opinião do Padre Anselmo Borges, teólogo e professor de filosofia da Universidade de Coimbra, que afirma que o aborto nem sempre é homicídio.
Actualização: neste momento, o Público online mantém um dossier sobre o assunto.

17.12.03

Sobre o aborto (2 de 3) 

A páginas 484, o Catecismo da Igreja Católica diz que "A vida humana deve ser respeitada e protegida, de modo absoluto, desde o momento da concepção". Acrescenta alguns exemplos de doutrina passada sobre o assunto, e conclui que "A Igreja pune com a pena canónica de excomunhão este delito contra a vida humana [o aborto]", dizendo que neste caso a gravidade do assunto impede sequer que se fale de falta de misericórdia. Não há qualquer referência às circunstâncias do aborto, nem à mulher que aborta.

Noto que, na página anterior (p. 483), ao falar da legítima defesa e do bem comum da sociedade, o Catecismo diz que "reconheceu-se aos detentores da autoridade pública o direito e a obrigação de castigar com penas proporcionadas à gravidade do delito, incluindo a pena de morte em casos de extrema gravidade, se outros processos não bastarem". No mínimo eu diria que isto contrasta um pouco com a protecção da vida humana "de modo absoluto" da página segiunte.

Termino notando que o Catecismo foi elaborado por uma comissão presidida pelo Cardeal Ratzinger, representante da facção mais conservadora e retrógrada da Igreja, que no entanto está colocada nos lugares de chefia, sem nunca para isso terem sido mandatados pela Igreja, entendendo correctamente "a Igreja" como a comunidade dos fiéis. Portanto, quado eles escrevem "A Igreja afirmou..." ou "A Igreja pune...", julgo que se confunde "Igreja" com "Hierarquia", ou "Elite". Mas isto levar-nos-ia a outras discussões.

PS. Pode ler-se no site da Agência Ecclesia (link à direita) a resposta da Comissão Episcopal às declarações do Bispo do Porto, e mais notícias com a mesma índole.

16.12.03

Le Chat du Rabbin 

Este é o título de uma série de banda desenhada, da autoria de Joann Sfar, com a qual tomei contacto quando estava em França. Tendo feito uma pesquisa no site da Fnac em Portugal, não encontrei nada, mas numa visita à loja do Chiado, decobri que se podem lá comprar ostrês volumes lá publicados, que são, por ordem, "Le bar-mitzvah", "Le Malka des Lions" e "L'exode".

A história é, como o nome indica, sobre um gato dum rabino que vive na Argélia (ocupada pela França), e começa quando o gato, depois de comer o papagaio da família, começa a falar. E não fala à toa: por ter ouvido muitas vezes o rabino ensinar, consegue saber mais de religião que um judeu comum. Assim, no primeiro livro, ele pede para se tornar judeu, exigindo um "bar-mitzvah", que corresponde à passagem à maioridade para um judeu. E mais não conto — comprem os livros, ou vão à Fnac dar uma vista de olhos.

Em geral, as histórias estão feitas com uma sensibilidade muito grande e com um óptimo sentido de humor, ainda que abordem temas como a relação entre árabes e judeus, o progresso do judaísmo ou as variantes do judaísmo, tudo num contexto de uma história pessoal (e animal), do rabino e do seu gato. Além disso, o desenho e o lettering são notáveis.

15.12.03

Sobre o aborto (1 de 3) 

Saiu um artigo no Expresso desta semana em que se afirmava que o bispo do Porto tinha tomado uma posição contrária à da Igreja ao afirmar que as mulheres que praticam o aborto não devem ser penalizadas. Ora, eu sabia que a Igreja prevê que o aborto leve à excomunhão, mas nada fala de penalizações como julgamentos, penas ou multas de carácter civil (afinal, Igreja é uma coisa e Estado é outra), e até tinha ideia de ter lido algures que, no espírito de "odiar o pecado e amar o pecador", se devia ter alguma consideração às circunstâncias da mulher que aborta. Informei-me então no Catecismo e no Concílio. Amanhã publicarei os meus achados.

14.12.03

João XXIII na RTP1 

Está prevista a exibição na RTP1 de uma mini-série sobre a vida de João XXIII, o papa que convocou o Concílio Vaticano II, e que foi recentemente beatificado. A mini-série terá Bob Hoskins no papel principal, e constará de dois episódios de hora e meia, a serem exibidos na RTP1, quinta-feira 18 às 22:00 e sexta-feira 19 às 23:00.

12.12.03

3º Domingo do Advento (ano C) 

No Evangelho de hoje, João Baptista avisa que só o Messias traria o Espírito Santo. Nós já o recebemos. Ou será que não? Será que ainda precisamos de ouvir as admoestações que ele dava a quem vinha receber o seu baptismo, que nem sequer era o baptismo que nós recebemos, mas só um baptismo de penitência? (Sobre isto veja-se Actos 19, 1-7.)

A presença do Espírito Santo talvez se note em pequenas coisas, como estar sempre alegre no Senhor, como dizia o apóstolo Paulo na segunda leitura. Não é um estar sempre alegre por sermos parvinhos, ou um estar sempre alegre porque estamos sempre drogados (há gente assim), ou alienados do mundo que nos rodeia (idem). É que há quem esteja sempre alegre numa situação bem descrita por Pascal: «corremos alegremente para o precipício depois de pormos qualquer coisa à nossa frente para não o vermos». (Cito de cabeça; vem nos Pensamentos, mas não sei o número.)

Não: esta é uma alegria mais profunda que resulta não de fingirmos que o mundo não existe ou que tudo está bem, mas do Espírito Santo e da confiança que ele nos dá de que Jesus venceu o mundo (João 16, 33). Não é que finjamos que tudo está bem, mas sabemos que Deus nos ama, e com os olhos postos em Jesus avançamos em direcção ao seu Reino.

E depois Paulo diz-nos que a nossa bondade deve ser conhecida de todos. Penso que isto encompassa e até excede todos os conselhos que João Baptista andava por lá a dar. E contudo, quando ouvimos só assim uns termos genéricos (bondade, amor, caridade, etc.), por vezes esquecemo-nos das acções concretas, como aquelas que ele enunciou. Perguntemo-nos nós também o que devemos fazer, e olhemos para os santos de todos os tempos, nossos modelos (Filipenses 3, 17; 1 Tessalonicenses 1, 7; 1 Timóteo 1, 16; Tiago 5, 10), e acima de tudo para o nosso Mestre Jesus, a quem eles imitaram e de quem receberam a graça que lhes permitiu reflectir na sua vida a do Cristo enviado por Deus para nos mostrar como ele é (João 1, 18).

10.12.03

O inefável Pedro Rodrigues enviou-me (a mim e a mais gente) um texto recebido da não menos inefável Marta, em que se argumenta que o mal não é mais que a ausência de bem, e que portanto não é criado por Deus — ideia que, aliás, vem no seguimento do último texto do Duarte. Achei o texto bonito, e deixo-o aqui.

O maniqueísmo 

Há quem não considere o maniqueísmo uma heresia cristã mas sim uma religião à parte. Na verdade tanto pode ser encarado como uma versão cristã do zaratustrismo como como uma versão zatustrista do cristianismo.

O zaratustrismo (ou zoroastrismo ou mazdeísmo) era uma religião fundada pelo profeta Zaratustra (ou Zoroastro; a maneira como o nome dele aparece escrito depende dos livros de história) na Pérsia, e segundo a qual havia dois deuses: um mau e um bom, chamado Ahura Mazda. O deus mau tinha criado o que era mau, e o deus bom tinha criado tudo o que era bom, e ainda o Homem, com liberdade de escolher entre o bem e o mal. No fim dos tempos o deus bom havia de dar uma coça no deus mau, e toda a humanidade ressuscitaria e passaria por uma torrente de metal fundido, que executaria um julgamento automatizado: os maus morreriam queimadinhos, e os bons passariam sem problemas e viveriam eternamente.

Durante o cativeiro em Babilónia, os judeus contactaram com o zaratustrismo, que influenciou muitas das suas ideias. Foi daí que vieram os conceitos da ressurreição e do julgamento no final dos tempos; este foi identificado com a noção do dia de Javé, que já havia; o deus mau foi identificado com um anjo acusador da corte celeste de Javé, e mesmo muita da angeologia que passou para o cristianismo foi copiada do zaratustrismo (sim, porque embora o zaratustrismo fosse uma religião monoteísta no sentido que só se devia adorar um deus, o deus bom, as pessoas continuavam na prática a adorar os muitos deuses antigos, recauchutados como anjos da corte celeste do tal deus bom). (Repare-se que muitos judeus, os saduceus, repudiavam estas inovações de doutrina, até mesmo ainda no tempo de Jesus, passados séculos, e continuavam a achar que não havia ressurreição nem anjos -- Actos 23, 8.)

O profeta Mani (ou Maniqueu; viveu no século terceiro) juntou isto ao cristianismo, dizendo que o deus que aparecia no Antigo Testamento como tendo criado o mundo era o deus mau, e que Jesus é que era o deus bom, e que além disso Jesus é que tinha convencido Adão e Eva a desobedecer ao deus mau. Isto copiou ele de algumas seitas gnósticas, que também diziam o mesmo. Proclamou que ele é que era o Paráclito prometido por Jesus (em vez do Espírito Santo; curiosamente mais tarde Maomé disse o mesmo de si). Morreu mártir, crucificado e esfolado. A doutrina dele teve vigor durante uns séculos, mas as terras onde tinha mais adeptos foram islamizadas e no resto do oriente acabou por se extinguir.

Há mais informações na enciclopédia católica. Ainda hoje há muito maniqueísmo por aí, embora camuflado. É muito tentador ver o mundo a preto e branco, bons para um lado, maus para o outro, como se fosse tudo um filme americano; e muitos católicos caem nesse erro mesmo sem se darem cnta.

5.12.03

Católicos de carapuça 

Nos Estados Unidos há um grupo católico (não reconhecido pelo Vaticano) que lançou uma campanha a favor do preservativo. Veja-se a notícia no Público.
PS. E o próximo post já será escrito em Lisboa...

Segundo domingo do Advento 

Este domingo o tema é a conversão, sendo o evangelho centrado em S João Baptista, que convida os seus seguidores a "Preparar o caminho do Senhor, endireitar as suas veredas" — para um comentário sobre este tema, veja-se o link "Leituras dos domingos" aqui à direita. Sendo este um tema muito importante, queria no entanto chamar a atenção para o princípio da leitura do evangelho:

No décimo quinto ano do reinado do imperador Tibério,
quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia,
Herodes tetrarca da Galileia,
seu irmão Filipe tetrarca da região da Itureia e Traconítide
e Lisânias tetrarca de Abilene,
no pontificado de Anás e Caifás,
foi dirigida a palavra de Deus
a João, filho de Zacarias, no deserto.


É notável a tentativa de concretizar ao máximo as circunstâncias históricas do acontecimento, fazendo referências excessivas até, para que se saiba exactamente quando isto sucedeu, e com quem, e que essas pessoas eram pessoas históricas concretas.

Assim fosse mais a nossa fé uma fé no Cristo que é também Jesus de Nazaré, nascido de Maria, num certo ano, e menos num deus abstracto, feito um pouco na nossa cabeça, imaginado muitas vezes como uma versão mais perfeita de nós mesmos, e como um acumular de qualidades aristotélicas abstractas: omnipotente, omnisciente, perfeito... Seria bom que neste Advento o nosso deus se tornasse mais parecido com o Pai de Jesus Cristo que nasceu numa gruta, num determinado ano, sob um determinado regime político, numa determinada cultura, numa determinada família. Esse é o único deus verdadeiro.

2.12.03

Recordações de Paris, 7 


Psique despertada pelo beijo de Eros
, A Canova, 1793
A primeira coisa a dizer sobre esta estátua é que é lindíssima, nas formas e na delicadeza dos gestos. Quanto a interpretações de carácter religioso, queria só salientar que é como uma imagem simétrica da Pietá, em que se representa Maria com Jesus Cristo morto nos braços.

Isto porque esta representa uma situação em que o deus romano do amor, Eros, desperta a sua amada Psique através de um beijo. Assim, é um ser divino amoroso que desperta uma mortal do sono da morte. Na Pietá, é um ser divino amoroso que se apresenta morto nas mãos de sua mãe, ela própria humana e mortal, que é incapaz de lhe restituir a vida.

Isto reflecte, a meu ver, a maior proximidade dos mitos cristãos à nossa vida quotidiana. A morte humana tem, acreditamos nós, a ressurreição depois. Mas não deixa de ser um fim, que o próprio Deus não quis contornar, ainda que o pudesse fazer, para que fosse completa a sua solidariedade connosco. Assim o Cristo da Pietá é um Cristo morto-morto.

Comentário ao Evangelho 

A semana passada coube ao Duarte fazer o comentário, queria só repetir uma coisa que o padre da missa onde eu fui disse na homilia, acerca da seguinte passagem do Evangelho:

Tende cuidado convosco,
não suceda que os vossos corações se tornem pesados
pela devassidão, a embriaguês e as preocupações da vida.


Ele alertou para a "devassidão" que consiste transformar o Natal numa festa materialista, para a "embriaguês" e a "preocupação da vida" que consiste na compra das prendas.

1.12.03

1º Domingo do Advento (ano C) 

Estou já atrasado a comentar os passos da Escritura que se lêem neste dia, e por isso deter-me-ei apenas sobre o fim da primeira leitura: «Este é o nome que chamarão à cidade: "O Senhor é a nossa justiça"». (Jeremias 33, 16)

Provavelmente concordaremos que as nossas cidades, hoje em dia, não podem ser chamadas por esse nome. Aliás a sociedade humana em geral não pode: deve ser mais assim que devemos pensar, porque claro que para Deus tanto contam os que moram na cidade como no campo. No mundo de hoje não reina justiça nenhuma. Claro que não devemos pensar: dantes é que era bom. Isso é mentira. Não houve nenhuma idade de ouro no passado, embora alguns se divirtam a pensar que sim. Se estudarmos História, vemos como dantes, em séculos passados, também havia, por exemplo, assaltos à mão armada e violações em Lisboa, se calhar até mais (face ao número de habitantes) que hoje. Se calhar o que acontecia era que não se dava a mesma importância social aos acontecimentos. Se uma criada era violada, por exemplo, isso não seria tido por muito importante, nem se daria a tal acontecimento a importância que se dá hoje. Do mesmo modo, rixas na rua, com pancadaria, toda a vida foram cenas (infelizmente) frequentes, embora hoje se encarem de modo diverso daquele que se empregava outrora (e que era muitas vezes o de não ligar, por se achar que isso eram coisas naturais).

Deve-nos preocupar, contudo, não como as coisas foram, mas como são, para as podermos transformar, como feremento que nós, os cristãos, devemos ser, e irmos construindo já nesta vida o Reino de Deus. No nosso mundo, onde em vez de justiça há tantas vezes fraudes, mentiras, enganos, promoção de quem não tem escrúpulos... o que é que poderemos fazer para que seja verdade que o Senhor é a nossa justiça?

Também penso que erraremos se quisermos que esse seja o nome da cidade por imposição, pretendendo que todos têm de reconhecer o Senhor (ou será que pretenderíamos que os outros reconhecessem a nossa imagem e ídolo do Senhor?). O Senhor é fonte de justiça numa sociedade mesmo quando nem todos o reconhecem. Ele age através de nós, que somos seus discípulos, de forma consciente. E age nos que não crêem nele também, ainda que não dêem conta.

O Evangelho de hoje, parte do discurso escatológico dos sinópticos, pode levar alguns a acreditar que o fim do mundo está próximo. Contra esse disparate foi escrito o livro «O sinal dos últimos dias - quando?» de que há uns capítulos aqui.

Gnosticismo 

Por sugestão do Pedro Freitas, vou escrever alguma coisas sobre sucessivas quebras da unidade dos cristãos. Seguindo a ordem cronológica, começarei pelos gnósticos.

A primeira coisa a notar é que «gnósticos» é um saco onde se mete muita coisa diferente (é como os «mouros» que surgem na História de Portugal, e que ora eram parte dum vasto império, ora eram um reino ibérico unificado, ora eram uma colecção de reinozinhos em guerra entre si: mas dizer sempre «os mouros» facilita a descrição). Apareceram antes de Cristo, e havia seitas gnósticas que não eram cristãs, e das que eram, muitas reconheciam um Cristo que pouco (ou nada) tinha a ver com Jesus (era uma personagem mais ou menos idealizada, de fantasia, assim como o Pai Natal nos nossos dias).

Algumas generalidades sobre os gnósticos: achavam que a salvação se adquire por meio do conhecimento da verdade (não fazendo boas obras, nem tendo fé, nem por graça de Deus, nem em virtude da redenção). Essa verdade não era para toda a gente mas só para os iniciados da sua própria seita. Para os gnósticos cristãos, essa verdade teria sido ensinada por Jesus aos apóstolos em segredo e estes teriam continuado a comunicá-la assim (apesar de Jesus ter dito: «o que vos digo em privado, dizei-o em plena luz, e o que vos digo ao ouvido, proclamai-o dos telhados» - Mateus 10, 27).

Visto que o conhecimento é que interessa, uma conclusão a que amiúde se chegava era a de que o corpo não presta para nada. O desprezo pelo mundo material era geral entre os gnósticos: achavam que era algo de vil. As consequências disso, contudo, variavam: uns abandonavam os bens materiais por completo, por serem vis e inúteis; outros achavam que, como o que diz respeito ao corpo não interessa e a salvação se obtém é mas é pelo conhecimento, então podiam fazer o que quisessem, e envolviam-se em orgias. Erros diametralmente opostos, mas exactamente com a mesma origem.

Muito mais haveria a dizer; há mais pormenores, por exemplo na Enciclopédia Católica (http://www.newadvent.org/cathen/06592a.htm, embora este texto com quase 1 século esteja desactualizado porque já se sabe mais sobre estes fulanos). O pensamento gnóstico influenciou o MANIQUEÍSMO, de que falarei da próxima vez.

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