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11.8.04

Comentários à Carta sobre a colaboração do Homem e da Mulher 

1) A carta apresenta-se «como ponto de partida». Ainda bem. Lembra coisas importantes, diz outras discutíveis, mas não é algo a digerir e assimilar como um bruto irracional sem capacidade de pensar. (Peço perdão por tornar a falar das Testemunhas de Jeová, mas entre elas é que os artigos da Sentinela devem ser aceites sem pestanejar e engolidos sem pensar... sejamos católicos, não TJ!)

2) Para uma carta que se intitula «sobre a colaboração do Homem e da Mulher», fala quase só das mulheres. Parece que com os homens está tudo bem, nada há de importante a dizer.

3) Acentua-se nesta carta o irritante hábito de atafulhar as notas de pé de página só com referências aos textos do João Paulo II. Parece que antes dele não havia cristianismo. As referências bíblicas são uma minoria face às do JP2, que aparentemente sabe mais que a Bíblia. A Tradição que é fonte de doutrina (juntamente com a Bíblia) também parece ter começado em 1978. Os Padres da Igreja, a teologia medieval, o Concílio de Trento, etc., tudo isso não vale um chavo. Só o JP2 é que sabe.

4) A carta inclui um trecho de exegese bíblica lindíssima (§§ 5-6):
No primeiro texto (Gen 1,1-2,4) descreve-se (...) o quadro geral em que se coloca a criação da humanidade. «Disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança... Deus criou o ser humano à sua imagem; criou-o à imagem de Deus; criou-o homem e mulher» (Gen 1, 26-27). A humanidade aqui é descrita como articulada, desde a sua primeira origem, na relação do masculino e do feminino. É esta humanidade sexuada que é explicitamente declarada «imagem de Deus».

O segundo relato da criação (Gen 2,4-25) confirma inequivocavelmente a importância da diferença sexual. Uma vez plasmado por Deus e colocado no jardim, de que recebe a gestão, aquele que é designado ainda com o termo genérico de Adam sente uma solidão que a presença dos animais não consegue preencher. Precisa de uma ajuda que lhe seja correspondente. O termo indica, aqui, não um papel subalterno, mas uma ajuda vital.(*) A finalidade é, efectivamente, a de permitir que a vida de Adam não se afunde num confronto estéril, e por fim mortal, apenas consigo mesmo. É necessário que entre em relação com um outro ser que esteja ao seu nível. Só a mulher, criada da mesma «carne» e envolvida no mesmo mistério, dá um futuro à vida do homem.

(*) A palavra ebraica ezer, traduzida com ajuda, indica o socorro que só uma pessoa dá a uma outra pessoa. O termo não comporta nenhuma conotação de inferioridade ou instrumentalização, se se tem presente que também Deus é por vezes chamado ezer em relação ao homem (cfr Ex 18,4; Sal 9-10, 35).


5) Depois a carta estraga tudo insinuando (a partir do § 10, na sequência duma boca do fim do § 3) que a segunda pessoa da Santíssima Trindade assumiu não a natureza humana mas a natureza masculina. A natureza feminina tem de se contentar com Maria. Eu sei que isto não é dito assim, mas julgo que as entrelinhas são claras.

6) Os comentários do fim do § 13 são bonitos e justos; eu concordo com o que lá vem, pena é que repasse o texto um certo saudosismo pela situação em que a mulher dedica «a totalidade do seu tempo ao trabalho doméstico» (hipótese que é apresentada subrepticiamente como muito melhor que trabalhar). A boca da «justa valorização do trabalho realizado pela mulher na família» que evite que essas mulheres sejam «economicamente penalizadas» é certamente fruto duma mente delirante que não sabe em que mundo é que vive (decerto efeitos de viver muitos anos sem ter de trabalhar fora da Igreja, sustentar uma família, pagar impostos, ir a repartições públicas ou a bancos, tratar dessas coisas que o comum dos mortais tem de fazer mas os clérigos do topo da hierarquia não sabem o que são).

7) Seja como for, o resultado não é mau, embora seja verdade um comentário que já ouvi: a Igreja parece que anda sempre a reboque de mudanças da sociedade que se dão por si, contra as quais reage, e que depois não tem outro remédio senão aceitar tarde e a más horas, e muitas vezes de má vontade e/ou só parcialmente. Com a mudança da condição social e profissional das mulheres parece que o padrão se repete pela enésima vez... Provavelmente daqui a um século (esperemos) o magistério da Igreja fará sair textos mais desempoeirados que este, que seriam óptimos para agora, mas nessa altura vão estar já atrasados face ao que faria falta...

8) E por fim uma sensação que me ficou dos comentários que já ouvi e li nos órgãos de comunicação social. Parece que se dividem em dois tipos: os que encaram isto como Revelação Divina (que nem os mórmones com os sermões do Profeta Joseph Smith) vendo nele méritos que não tem, e os que execram o texto exagerando os seus defeitos e lendo nele afirmações mais reaccionárias e ultra-conservadoras que as que efectivamente tem. Mau sinal que não é a primeira vez que só vejo tais extremos a comentar questões eclesiásticas...

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