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29.3.04

Na sequência deste último comentário do Pedro, lembrei-me de um episódio contado por Collin McEvedy em The Penguin Atlas of History of the Pacific. Houve na segunda metade do século 19 uma revolta na China do sul contra a dinastia manchu, que também estava relacionada com a perda de credibilidade desta originada por inúmeras concessões às potências estrangeiras, e com a péssima situação económica do campesinato. A revolta não triunfou, mas para a abafar o exército chinês matou 25 milhões de pessoas. Houve um diplomata europeu em Pequim que, ao saber disto, ficou horrorizado. Disse-lhe um ministro do governo chinês que se não preocupasse: «na China, um milhão não é um número grande».

Em Cristo, somos um só corpo; e somos como ramos enxertados numa videira, que é Cristo; somos pedras de um só templo espiritual. Mas isso não quer dizer que cada um de nós deixe de ser uma pessoa para se tornar apenas um pedaço duma massa indistinguível. Como alguém disse: uma pessoa não é um milhão de pessoas a dividir por um milhão.

Isso nota-se também na doutrina da ressurreição. Por oposição àquelas religiões em que se espera ser-se reciclado, reincarnando sucessivamente, até se atingir um estado de felicidade que na realidade é o de uma dissolução num todo, perdendo-se por fim até a individualidade que sobraria depois de tantas reincarnações, Jesus mostra-nos um amor de Deus que nos ama a cada um, como somos. E isto mesmo que imperfeitos, porque a nossa purificação não somos nós que a temos de conseguir em sucessivas tentativas sempre necessariamente frustradas: é Cristo que no-la oferece gratuitamente. Alguém exprimiu isso de forma muito bela, dizendo que, mesmo que só houvesse uma pessoa no mundo, e tivesse cometido todos os pecados desde o seu início até ao seu fim, mesmo assim Cristo morreria para a salvar.

26.3.04

O terrorismo e o pensamento religioso 

Desde o início das notícias dos atentados de Madrid que houve uma coisa que me chocou: o número de mortos. Pode ler-se aqui a contagem dos mortos dos atentados da ETA, em cada atentado nunca se passa dos vinte e poucos. Desta vez foram, oficialmente, 190, com mais alguns restos de corpos desmembrados que não se sabe de quem são. É certo que, quando se trata de assassinatos, os números não têm um valor tão absoluto assim, mas note-se que a escala é praticamente 1 para 10.

E lembrei-me de um texto de Joseph Campbell, do terceiro volume do The Masks of God, escrito em 1971, onde ele compara os pensamentos religiosos do ocidente e do oriente (entenda-se: para lá dos Urais), salientando a maior importância da pessoa humana (e da sua vida) no pensamento religioso ocidental:

One may take it as a point in evidence of the advanced position of Europe in the way of respect for the individual that, whereas Hitler's massacre of some 5,000,000 jews evokes (and properly so) horror from all sides, Stalin's of 25,000,000 Russians passes almost without notice, and the present Chinese orgy is entirely overlooked.

É politicamente incorrecto dizer isto, mas parece-me difícil este atentado ter sido obra de europeus. Até os terroristas têm uma matriz psicológica religiosa.

5º Domingo da Quaresma C 

Na Epístola deste Domingo (Filipenses 3, 8-14) Paulo escreve: «Por Ele [Cristo] renunciei a todas as coisas e considerei tudo como lixo, para ganhar a Cristo.» Isto pode-nos parecer um pouco forte. Mas se olharmos com atenção talvez nos dêmos conta que a maioria das coisas com que nos preocupamos na vida têm uma importância menor que aquela que lhes damos. Isso às vezes vê-se bem em ocasiões em que nos sucede algo de fora do normal, seja algo de bom seja algo de mau ou doloroso. Neste último conjunto, contam-se ocasiões como uma doença grave ou uma morte. Nesses momentos vemos que tudo é passageiro e fugaz. A quem não tem fé talvez isso conduz ao desespero; nós porém sabemos que Cristo ressuscitou, que os sofrimentos e a sua morte não foram o fim, mas um início. Seria bom que nessas circunstâncias pudéssemos «conhecer Cristo, o poder da sua ressurreição e a participação nos seus sofrimentos». Mas também noutras circunstâncias menos dramáticas e menos definitivas, da nossa vida profissional ou pessoal, por exemplo, poderemos dar-nos conta de que talvez a nossa escala de prioridades está mal calibrada e que valorizamos excessivamente coisas que o não merecem. Afinal de contas, muitos de nós temos tendência para exagerar os nossos problemas a nossos olhos, ou a irritar-nos com coisas que melhor se resolveriam com uma atitude mais serena.

E em circunstâncias favoráveis? Talvez uma grande alegria nos possa mostrar também que certas coisas que nos deixavam de rastos afinal podem ter solução, ou ser resolvidas sem que nos agastemos excessivamente, ou que prestávamos atenção a coisas que afinal não eram para nós fonte de felicidade. Paulo escreveu: «Considero todas as coisas como prejuízo, comparando-as com o bem supremo, que é conhecer Jesus Cristo, meu Senhor.» Isto quer dizer que há muitas coisas boas no mundo: tudo é lixo, sim, mas comparado com Jesus que é a fonte de quem a nossa vida e que de bom há nela provém. Como seria bom se víssemos mais vezes o rosto de Cristo neste mundo, em vez de vermos obstáculos, contrariedades, pessoas que nos desagradam... Claro que o rosto de Cristo não se vê bem no mundo que nos rodeia. O mundo que nos rodeia está cheio de mal e de pecado: «todo o mundo jaz no poder do maligno» (1 João 5, 19), como disse João. Por isso, vemos Cristo «como imagem num espelho» (1 Coríntios 13, 12) e ainda não «face a face» (idem). Mas lembremo-nos que, se no mundo há pecado, «onde abundou o pecado, superabundou a graça» (Romanos 5, 20), pelo que na verdade este mundo está cheio da sua glória.

19.3.04

4º domingo da Quaresma 

Reconciliação. Esta é a palavra chave de todas as leituras deste domingo. E essa reconciliação consegue-se graças ao amor paternal de Deus por nós, a essa face quase maternal de Deus que Lucas gosta tanto de pôr em evidência.

A leitura é a do filho pródigo, e não sei que possa dizer desta leitura... Há tanto para dizer, e tanto já foi dito. Há livros sobre esta leitura apenas (como por exemplo O Regresso do Filho Pródigo, do Nouwen, que tão famoso foi no Grupo Novo há uns anos). A Núria, por exemplo, dizia que esta não era a parábola do filho pródigo, mas do Pai bom, pois é maior a bondade do pai que a capacidade do filho de esbanjar.

Enfim, acho que vou fazer uma interpretação do contra, inspirada num texto do Miguel Torga, e na minha própria experiência presente. Que há casas de onde apetece sair, para se ver o mundo, e ter uma vida própria, e não viver debaixo das saias de uma suposta mãe igreja ao mesmo tempo condescendente e fazendo-se de sacrificada aos ódios do mundo quando a criticam. A mim agora apetece-me estar com os iconoclastas, a partir o templo como Jesus disse que faria em três dias, ou pelo menos a partir a parte que me compete partir. A ver se depois aparece um que pareça mais a casa de um Pai amoroso, onde apeteça voltar, e em que tudo o que é dele seja meu também — especialmente a co-responsabilidade de tomar decisões e não apenas de entender e seguir ensinamentos.

17.3.04

Carta da CNJP 

A Comissão Nacional Justiça e Paz escreveu esta carta aos cristãos, relativa ao tempo de quaresma e ao que significa, neste mundo e nesta sociedade, ser sal da terra e luz do mundo. São só cinco páginas, e vale a pena.

15.3.04

Taizé vem a Portugal 

Veja-se a notícia no Público sobre o Encontro Europeu de Jovens de Taizé, a ter lugar em Dezembro, em Lisboa

12.3.04

3º Domingo da Quaresma C 

As palavras de Jesus que se lêem na missa de hoje (Lucas 13, 1-9) recordam-nos algo que por vezes nos custa muito a aceitar: quando sofremos, quando nos sobrevêem desastres, quando a vida nos não sorri, isso não quer dizer que se trate dum castigo de Deus. Como ele seria injusto se assim fosse! Diariamente vemos gente que morre ou que sofre sem que percebamos porquê. Às vezes, vê-se que há alguém que foi responsável, como quando alguém morre num desastre de automóvel em que a culpa foi doutro. Mas no caso duma doença, muitas vezes não há ninguém a quem atribuir a culpa.

A humanidade sempre precisou de tentar perceber o porquê disto, e uma das desculpas que surgiu era a de que isso sucedia por castigo de Deus. Mas depressa se tonrou claro que havia casos em que isso não era explicação. Todo o livro de Jó é sobre esse assunto: o de um homem justo a quem de repente tudo corre mal, morrem-lhe os filhos, perde as riquezas todas e ainda adoece. Jesus afirmou o contrário: naquele tempo, uns galileus tinham sido mortos por algo a que hoje chamaríamos repressão policial, e havia uma torre que tinha ruído matando uma série de pessoas. São histórias que se repetem até aos nossos dias; hoje podem ser pontes e passagens pedonais que caem, e, se a repressão policial já não mata muitas pessoas entre nós, nem por isso deixam de morrer pessoas indiscriminadamente, como com as bombas que rebentaram esta semana em Madrid; mas, no fundo, «nada há de novo debaixo do sol» (Eclesiastes 1, 9). Só que as pessoas que morrem, não morrem por castigo de Deus: Jesus assegura-nos isso. Mas também diz que se nos não arrependermos, morreremos todo do mesmo modo. Como assim? Talvez Jesus pensasse nos seus compatriotas, que, se não mudassem o seu modo de encarar a ocupação romana, acabariam por trazer uma destruição muito grande à Judeia. Isso aconteceu, poucas décadas depois, quando houve mais uma revolta e os romanos arrasaram a cidade: mataram indiscriminadamente muita gente, e arrasaram tudo, incluindo o templo.

Mas também a nós estas palavras servem de aviso, porque a morte dessas pessoas podia parecer, a muitos, um desperdício, uma futilidade, porque tinham morrido sem razão nenhuma que se percebesse. Também hoje muita gente morre, e os outros perguntam porquê. Perguntam para que terá servido essa vida que se acabou assim subitamente, sem se esperar. E se nos não arrependermos, e não mudarmos a nossa vida, e a tornarmos algo que vale a pena, então também morreremos do mesmo modo: sem que nada tenha feito sentido, ou sem que alguma coisa fique de tudo o que passou.

Não matarás (Êxodo 20, 13) 

Há poucos dias o Público fez sair uma notícia segundo a qual morreram na semana passada 16 pessoas nas estradas portuguesas.

Se fosse um assassino que já tivesse morto 16 pessoas, o que se não teria dito! Quantas acusações se teriam proferido se ele não tivesse sido apanhado, e quanta gente teria medo de sair à rua! Se fosse uma epidemia que já tivesse resultado em 16 mortes, que pânico não seria! Toda a gente a comprar remédios, e com ataques hipocondríacos! Se fosse um desastre natural, quantos subsídios não teriam sido pedidos, e quantas cabeças de responsáveis políticos não teriam já rolado!

Mas não. São só mortos na estrada. A coisa mais natural do mundo, pois claro. Até é espanto é que seja notícia. Para quê ralarmo-nos. Afinal de contas somos todos nós que os matamos.

9.3.04

Mas as crianças, Senhor... (2) 

Hoje vou falar sobre a pedofilia. Em 2002 rebentou nos Estados Unidos um escândalo relacionado com padres pedófilos que levantou bastante poeira, e deu visibilidade a um problema que me parece muito profundo e disseminado — até por histórias que me contaram pessoalmente. A reacção papal pode ler-se nesta notícia, e contém um discurso cheio de belas palavras, mas outras notícias como esta mostram que nem sempre a acção da hierarquia defende as crianças — às vezes defende-se mais a si própria. E de facto, até há uns anos atrás as situações eram efectivamente abafadas por ordens superiores, para não estragar a imagem da instituição — veja-se por exemplo este press release do mês passado, sobre o eventual fim da "tolerância zero" para os bispos americanos...

Nos Estados Unidos, onde as coisas ainda conseguem ter alguma transparência, há pelo menos dois sites na net dedicados a estes assuntos: o SNAP e o We are Alert. E há até um site com piadas...

O Papa chamou a atenção para a situação das crianças nesta mensagem quaresmal. Aqui, poderia ele próprio ter feito mais, para que houvesse menos crianças maltratadas.

5.3.04

2º domingo da quaresma 

Hoje vou desenvolver uma ideia da primeira leitura, em que Deus faz a sua aliança com Abrão.

Naqueles dias, Deus levou Abrão para fora de casa e disse-lhe: "Olha para o céu e conta as estrelas, se as puderes contar". E acrescentou: "Assim será a tua descendência". Abrão acreditou no Senhor, o que lhe foi atribuído em conta de justiça.
Disse-lhe Deus: "Eu sou o Senhor que te mandou sair de Ur dos caldeus, para te dar a posse desta terra". Abrão perguntou: "Senhor, meu Deus, como saberei que a vou possuir?" O Senhor respondeu-lhe: "Toma uma vitela de três anos, uma cabra de três anos e um carneiro de três anos, uma rola e um pombinho". Abrão foi buscar todos esses animais, cortou-os ao meio e pôs cada metade em frente de outra metade; mas não cortou as aves. Os abutres desceram sobre os cadáveres, mas Abrão pô-los em fuga. Ao pôr do sol, apoderou-se de Abrão um sono profundo, enquanto o assaltava um grande e escuro terror. Quando o sol desapareceu e caíram as trevas, um brasido fumegante e um archote de fogo passaram entre os animais cortados. Nesse dia, o Senhor estabeleceu com Abrão uma aliança, dizendo: "Aos teus descendentes darei esta terra, desde o rio do Egipto até ao grande rio Eufrates".


Ora esta história dos animais pode parecer estranha, mas o seu significado é o seguinte: no tempo de Abrão, quando se fazia um pacto, uma aliança, as duas pessoas passavam no meio dos animais imolados, como que a dizer que desejam para si esse mesmo destino (a morte) se não cumprirem a aliança que estão a firmar. Note-se então que Abrão está a dormir, e é apenas Deus que passa no meio dos animais. É apenas Deus que se compromete com a aliança, por saber que a pessoa humana falha, e não é capaz de cumprir a lei plenamente. É já a lógica do amor paternal, que tudo dá, sem que exija retribuição igual; a lógica do Deus que no evangelho diz que Jesus é o seu Eleito, o seu Filho querido — e com ele todos nós que desejarmos essa condição. E, note-se o tamanho da promessa feita a Abrão: uma descendência tão numerosa como as estrelas do céu! Mais uma vez, Deus comporta-se quase como um Pai babado.

Só que... Só que, tal como com Cristo, às vezes Deus não parece nada ser generoso. Abrão e Sara, sua mulher, tiveram que esperar até serem velhíssimos para terem o seu filho, Isaac, que parecia que nunca mais vinha. O caminho que eles fizeram (e que se pode ver aqui) também parecia que não acabava. Parecia que Deus falhava. Com Cristo, ao olharmos para a sua morte, sem a vermos no contexto da ressurreição, também parece que Deus não é assim um Pai tão extremoso.

Sendo a quaresma um tempo de conversão e de mudança, noto que esta leitura é um apelo a que ponhamos as nossas dificuldades, frustrações e desânimos no quadro de uma promessa generosíssima de Deus, feita a cada um de nós, e que não falhará. Assim, toda a penitência, nem que ela seja simplesmente o aceitar das dificuldades, torna-se um aceitar confiante e cheio de esperança.

3.3.04

Mas as crianças, Senhor... (1) 

Este ano o Papa escolheu as crianças como o centro da sua mensagem de quaresma. Este domingo, o Frei Bento Domingues pegou no tema, e dedicou-lhe o seu artigo semanal, por um lado mostrando a condição miserável de tantas crianças no nosso planeta (com números, e não apenas com bocas), e defendendo o Papa contra gente que viu nesta mensagem um sinal de hipocrisia, em face das posições em relação à contracepção e à pedofilia. Desenvolverei estes dois últimos pontos brevemente. Stay tuned!

1.3.04

Centenário do Benfica 

Pois é. Pode parecer que um assunto destes não tem lugar num blogue sobre assuntos religiosos, mas atentem bem. O salmo de ontem dizia "Ele mandará aos seus anjos que te guardem em todos os teus caminhos. Poderás [...] calcar aos pés o leão e o dragão". Como se isso não bastasse, a leitura de Laudes de hoje diz "Vistes como vos tomei sobre asas de águia para vos trazer a mim". Isto para além de Jesus Cristo, como toda a gente sabe, ser Deus encarnado, e não azulado ou esverdeado...

Enfim, até no Reino dos Céus há cunhas. Francamente.

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