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29.10.04

Jacques Derrida 

O senhor em epígrafe foi, até à sua morte recente, um importante filósofo europeu (de origem argelina). O blogue Barnabé, aquando da sua morte, publicou uma entrevista sua ao jornal "Le Monde", dada a 19 de Agosto. É longa, mas parece-me um texto extraordinário, concorde-se ou não com o que ele diz. Deixo aqui um extracto, que tem de certo modo a ver com a questão da homossexualidade - desta vez a nível civil e não religioso, como é o caso com a Igreja Anglicana.

Si j'étais législateur, je proposerais tout simplement la disparition du mot et du concept de "mariage" dans un code civil et laïque. Le "mariage", valeur religieuse, sacrale, hétérosexuelle - avec voeu de procréation, de fidélité éternelle, etc. -, c'est une concession de l'Etat laïque à l'Eglise chrétienne - en particulier dans son monogamisme qui n'est ni juif (il ne fut imposé aux juifs par les Européens qu'au siècle dernier et ne constituait pas une obligation il y a quelques générations au Maghreb juif) ni, cela on le sait bien, musulman. En supprimant le mot et le concept de "mariage", cette équivoque ou cette hypocrisie religieuse et sacrale, qui n'a aucune place dans une constitution laïque, on les remplacerait par une "union civile" contractuelle, une sorte de pacs généralisé, amélioré, raffiné, souple et ajusté entre des partenaires de sexe ou de nombre non imposé.

Quant à ceux qui veulent, au sens strict, se lier par le "mariage" - pour lequel mon respect est d'ailleurs intact -, ils pourraient le faire devant l'autorité religieuse de leur choix - il en est d'ailleurs ainsi dans d'autres pays qui acceptent de consacrer religieusement des mariages entre homosexuels. Certains pourraient s'unir selon un mode ou l'autre, certains sur les deux modes, d'autres ne s'unir ni selon la loi laïque ni selon la loi religieuse.

28.10.04

Buttiglione e o cristianismo (2) 

Eduardo Prado Coelho, leitor assíduo do Nicodemos (haha), retoma algumas da ideias de um post meu anterior na sua crónica de ontem, em que responde a Mário Pinto, que escreveu há dias uma crónica no mesmo jornal, a associar-se, ideologicamente, a Buttiglione.

26.10.04

A Sanita de Lutero 

Descobriram-na!!

Crónica de Eduardo Prado Coelho 

A crónica de hoje do Público, que me foi indicada por Júlio Machado Vaz, no seu programa matinal na Antena 1, O Amor é, versa a educação das crianças, segundo o último número da revista francesa “Sciences Humaines”. Um dos textos versa a condição das crianças educadas por casais de lésbicas. Vale a pena ler o artigo, mas deixo aqui uma citação.

O que sucede às crianças educadas por um casal homossexual feminino? A nossa tendência leva-nos a imaginar consequências psicológicas nocivas. Ora, segundo o texto de Henny Bos, “Experience of parenthood, couple relationship, social suport and child-rearing goals in planned lesbian mother families”, publicado no vol. XLV deste ano do “Journal of Child Psychology and Psychiatry”, não é nada disso o que acontece. As mães lésbicas mostram-se particularmente competentes e a estabilidade da sua vida social mantém-se.

31º Domingo TC (ano C) 

A leitura do Antigo Testamento de hoje fala-nos da compaixão de Deus, que vai avisando aos poucos aqueles que o ofendem, por forma que eles abandonem a sua maldade e creiam. É uma mensagem muito necessária nos nossos dias, quando parece que todos estamos prontos a julgar e a dividir o mundo em bons e maus, estes últimos merecedores de castigos, mesmo castigos cruéis e desumanos. Esta mentalidade simplista (chama-se-lhe por vezes maniqueísta, dado que os maniqueístas criam em dois deuses, um bom e um mau, e que cada coisa no mundo tinha sido criada por um deles), talvez espalhada pelos filmes americanos (nos quais é sempre fácil distinguir os bons dos maus -- e se neles há um mau que se converte, logo desde o princípio se percebe quem vai ser, que os maus mesmo maus esses não mudam, monstros que são), é muito perigosa. Mesmo para os americanos (que a têm talvez por influência do calvinismo, visto que Calvino cria que Deus ao criar cada pessoa a predestinava logo a salvar-se ou a ir para o inferno, e depois cada pessoa na vida fazia as obras condizentes com aquilo a que estava destinada sem se poder escapar), como se vê pelas imbecilidades que cometem quando aplicam tais critérios à política externa (o que tem sucedido até à saciedade nos últimos anos, com a permissão de Deus para castigo dos nossos pecados...).

Em vez disso, Deus trata cada pessoa como pessoa, livre, e sempre passível de regeneração. Isso vê-se bem no exemplo de Jesus, a imagem do Deus invisível, que acolhe Zaqueu, de quem se calhar já nenhum dos outros habitantes de Jericó esperava nada de bom.

Também será bom que não caiamos na tentação de pensar que sempre nos podemos arrepender no futuro e portanto no presente vamos mas é fazer o que nos dá na gana. Sobre Zaqueu, houve Padres da Igreja que comentaram que, se o dinheiro que ele tinha era todo ou quase todo roubado (coisa provável), nunca conseguiria devolver tudo a toda a gente que tinha prejudicado com os juros e indemnizações que prometeu. Infelizmente, a maioria dos nossos pecados (e também a maioria das nossas más acções cometidas por ignorância ou sem pleno consentimento) também tem consequências (pense-se no caso de alguém que guia descuidadamente e causa um acidente em que mata alguém, coisa tão comum no nosso país) que se não podem «resgatar» com «juros» -- e muitas vezes até nem mesmo sem eles.

25.10.04

Buttiglione e o cristianismo 

Como toda a gente sabe, há um candidato a comissário europeu, Rocco Buttuglione, que escandalizou algumas pessoas por afirmar que a homossexualidade é pecaminosa, que as mães solteiras não são boas mães, e que o lugar das mulheres é em casa. Ele escudou-se para isso na coerência, aparentemente necessária, com o seu cristianismo.

Hoje no Público, Mário Pinto defende exactamente esta posição: tal como Buttiglione, ele diz-se católico, e está por isso obrigado a pensar da mesma maneira, ainda que aceite livremente essa obrigação, e que lhe parece ser preciso defender os cristãos que se dignam desse nome a manifestarem as suas opiniões.

Ora, em primeiro lugar, eu gostaria de dizer que as posições de Buttiglione sobre as mulheres estão longe de fazer parte do depósito da fé. É perfeitamente possível ser-se católico e não dizer tais alarvidades.

Segundo, aquilo a que Mário Pinto chama uma "administração autónoma da doutrina", isto é, as opções de pessoas que conscientemente não se revêem nalgumas posições da hierarquia - e com toda a legitimidade para o fazer, pois não pensamos todos pela cabeça do Papa - é a própria essência do cristianismo: uma fé pessoal que, acreditando livremente em Jesus Cristo, procura a verdade em cada situação, em união com a Igreja - e aqui, entenda-se "Igreja" o conjunto dos fiéis, com leigos, padres, bispos e Papa.

Quanto aos homossexuais, a coisa parece fiar mais fino. Dizer que a homossexualidade "é pecado" é apenas uma afirmação religiosa, que, pode argumentar-se, não influenciaria a actividade socio-política do candidato em questão.

Ora a isso responde bem Daniel Oliveira, do blogue Barnabé, ao argumentar que convicções (ideológicas ou religiosas) não podem ser ignoradas quando se fala de política, pois é natural que as pessoas, ao governar, sejam coerentes consigo mesmas.

Sim, eu também sou cristão e católico. E sim, tenho liberdade de não pensar como Buttiglione, sem deixar de assumir com toda a plenitude a minha fé.

22.10.04

30º domingo TC 

Dois homens subiram ao templo para orar;
um era fariseu e o outro publicano.
O fariseu, de pé, orava assim:
‘Meu Deus, dou-Vos graças
por não ser como os outros homens,
que são ladrões, injustos e adúlteros,
nem como este publicano.
Jejuo duas vezes por semana
e pago o dízimo de todos os meus rendimentos’.
O publicano ficou a distância
e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu;
Mas batia no peito e dizia:
‘Meu Deus, tende compaixão de mim,
que sou pecador’.


Hoje todas as leituras falam da justiça de Deus, que, como se vê aqui, não coincide com a justiça da humanidade. De facto, em geral, os fariseus eram visto como os guardiães da verdadeira fé, as "pessoas de bem", enquanto os publicanos eram vistos como cobradores de impostos desonestos e corruptos, ao serviço dos romanos invasores. Jesus vai aqui contra estes preconceitos sociais, fazendo cada personagem ter um comportamento oposto àquele que dela se esperaria. Na verdade, o que salva o publicano e condena o fariseu não é o facto de pertencerem ao grupo social certo ou errado, no conceito humano, mas na sua atitude perante Deus, na pureza do seu coração. Hoje diríamos: não é por ir à missa, ou fazer muitas rezas que a pessoas se salva, é por essas acções serem capazes de reflectir e por em prática essa pureza de coração, de a pessoa ser capaz de celebrar e alimentar essa pureza nas suas acções piedosas. Já agora, vale a pena ler o comentário dos Dehonianos na Agência Ecclesia.

Como post-scriptum, lembro que em vários sítios, nomeadamente em Fátima, se reza uma oração assim: "Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-vos/Peço-vos perdão pelos que não creem, não adoram, não esperam e não vos amam". Compare com as orações da leitura de hoje, e descubra as diferenças.

20.10.04

Os Anglicanos e a homossexualidade 2 

As reacções dos arcebispos primazes anglicanos ao relatório que mencionei na última mensagem são muito diferentes. A maioria das respostas são muito cautelosas (belos exemplos de textos compridos que não dizem nada senão «vamos a ver»), com duas excepções, que transcrevo abaixo. É de temer que a Comunhão Anglicana, que sobreviveu à questão de saber se se podem ordenar mulheres, agore se quebre por causa da questão de saber se se podem ordenar homossexuais ao episcopado.


(...) um grupo pequeno e economicamente privilegiado de pessoas tentou subverter a fé cristã e impor a sua nova e falsa doutrina a toda a comunidade de fiéis crentes. Vimos com tristeza como as irmãs e os irmãos que tentaram manter a sua lealdade para com «a fé outrora entregue aos santos» foram marginalizados e perseguidos pela sua fé. (...) [Nós] estamos a tentar trazer a Igreja de volta à Bíblia (...) -- Nigéria


(...) afirmo a presença e contribuição positiva de homossexuais e lésbicas em todos os aspectos da vida da nossa igreja e em todas as ordens do ministério. Também outras províncias [da Comunhão Anglicana] são abençoadas pelas vidas e pelo ministério de pessoas homossexuais. Lamento que haja lugares na nossa Comunhão onde não é seguro que manifestem a verdade sobre quem são. -- EUA



19.10.04

Os Anglicanos e a homossexualidade 

Mencionei aqui há uns tempos (veja-se o arquivo de Outubro passado) que a Igreja Episcopal Americana (a versão do anglicanismo nos EUA) tinha ordenado bispo um homem confessadamente homossexual. Bispos homossexuais já houve naturalmente muitos; a questão é que este o é abertamente, ao passo que dantes quem era homossexual não fazia alarde disso. Não acho, evidentemente, que se ele estivesse calado sobre tal assunto então já estivesse tudo bem. Mas a ordenação do homem em questão foi claramente um acto, por parte da Igreja Episcopal, para significar que a homossexualidade não é algo de pecaminoso mas algo que Deus aprova e pode ser encarada da mesma maneira que a heterossexualidade. Devo dizer que além de não concordar com a premissa acho que o exemplo foi péssimo: ainda se tivessem ordenado um homem que sempre foi homossexual... mas não, ele deixou a mulher e os filhos para ir viver com o homem com quem agora vive. Isto levanta também questões sobre o que Jesus disse acerca da indissolubilidade do matrimónio -- outra coisa acerca da qual certas Igrejas da Comunhão Anglicana (ainda que não todas) têm uma visão muito própria (isto é, concordam em princípio mas na prática é o que se vê).
Ora na Comunhão Anglicana repugnou a muitos esta ordenação. Padres abertamente homossexuais já havia na tal Igreja Episcopal, mas ordenar um deles bispo é ainda mais forte. Como ainda por cima várias dioceses da Igreja Anglicana do Canadá estavam para aprovar ritos litúrgicos para abençoar uniões homossexuais (só algumas dioceses, e com um estatuto liturgicamente inferior ao matrimónio, mas isso é em certa medida irrelevante), a questão tomou proporções perigosas. Um problema imediato foi a reacção interna, com várias paróquias nos EUA e no Canadá a pedirem a bispos que não o da sua diocese para assumirem a sua supervisão, para se colocarem sob a alçada de quem não aprova assim abertamente a homossexualidade. E várias Igrejas Anglicanas africanas e asiáticas reagiram ainda mais brutalmente, condenando os episcopais americanos como pecadores, quebrando relações formais, deixando de aceitar donativos que os americanos lhes davam, mandando voltar os padres que estavam nos EUA a estudar ou a exercer o seu ministério, e recusando os sacramentos aos membros da Igreja Episcopal Americana que aprovassem tal pecado.
(Devo dizer que ao recusarem o dinheiro da Igreja Episcopal Americana essas Igrejas africanas manifestaram muita coragem, porque o dinheiro lhes faz mesmo falta. Mesmo que se não concorde com os seus motivos, é louvável que tenham agido segundo as suas convicções, em vez de se deixarem comprar.)
A Comunhão Anglicana nomeou uma comissão para estudar o assunto, e ela recomendou que os Epicopais americanos peçam desculpa, não se ordenem mais homossexuais, e que os canadianos não abençoem tais uniões liturgicamente. Recomenda também muita reflexão e oração. Mas fica a sensação de que isto é tudo provisório, e que a aceitação da homossexualidade acabará por suceder no futuro, inexoravelmente, assim que se conseguir calar os africanos e asiáticos...
Pode-se ler o relatório inteiro aqui.

18.10.04

Artigo do Frei Bento Domingues 

Já que falei de Fátima aqui, deixo o resumo que o Frei Bento Domingues fez da situação no seu artigo de domingo no Público. Cito um excerto:

É verdade que, no começo de Setembro, encontrei, na Cova da Iria, um integrista assumido que me falou longamente dos escândalos da hierarquia de Fátima. Ela nunca deixou os seguidores de D. Lefevre celebrar na Capelinha das Aparições, mas recebeu, de braços abertos, o ateu Dalai Lama - para rezar não se sabe a quem! - e os hindus que rezam seja ao que for.

Para este adversário da política religiosa do santuário, as autoridades de Fátima estão a gastar o dinheiro do povo cristão na construção de uma basílica com capelas destinadas a religiões inimigas da Igreja.

Repetiu-me, várias vezes, que os verdadeiros amigos de Fátima precisam de agir e agir depressa para que Roma intervenha e reponha a tradição católica. A hierarquia de Fátima, ao ter à disposição rios de dinheiro, pensa que manda nas aparições, na mensagem e na devoção a Nossa Senhora. Esquece que Fátima é anterior ao Concílio Vaticano II e à escandalosa rendição às falsas religiões. Os "irresponsáveis" da Cova da Iria permitem-se tudo e mais alguma coisa. Levados pela nova vaga do turismo religioso, só pensam em obras destinadas a distrair da mensagem pura e dura de Nossa Senhora que só queria uma capelinha. Nunca falou numa basílica. Construíram duas. A última já está destinada aos inimigos da verdadeira fé.

15.10.04

29º Domingo TC 

São Paulo diz-nos na epístola de hoje que toda a Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, refutar, corrigir, etc.. Pode-nos parecer isso estranho ao vermos relatos como o da primeira leitura onde se louva uma guerra, embora isso ainda se entenda por se tratar de uma guerra defensiva: o Amaleque é que não tinha nada que ir tentar dar cabo dos israelitas. Mas há pior no Antigo Testamento, desde genocídios a violações, e outras coisas que tais que é ocioso mencionar. Alguém notou que o Antigo Testamento não é um «livro de edificação» no sentido de ter só histórias bonitas. É na verdade um espelho que reflecte uma história bela, sim, mas por ser ao mesmo tempo real e divina, e não isenta de imperfeições: a história de como Deus actuou na humanidade, e em particular no povo eleito dos israelitas, para preparar a estupenda revelação do seu amor no seu Filho Jesus Cristo.

Se nos atermos à letra dos textos, muitas crueldades do Antigo Testamento poderiam penetrar-nos a mente na sua crueza e parecer-nos justificadas (ou então rejeitaríamos o Antigo Testamento no nosso esforço de sermos superiores ao que lá por vezes se relata). Contudo, também o Novo Testamento, e não só o Antigo, tem de ser lido não à letra mas como um livro vivo, escrito numa época já remota mas sempre cheio de coisas novas. Isto é, deve ser lido sabendo-se que o Espírito Santo de que lá se fala nos guia ainda hoje e nos revela a vontade do Pai, como prometeu Jesus. É que sem isso o Novo Testamento também seria uma relíquia tão interessante como os escritores da Antiguidade greco-romana: muito lindos para fazer filmes, com umas frases bonitas para citar, e pouco mais.

E o livro do cosmos à nossa volta é também Escritura onde se lê a palavra de Deus. Sobre isso lemos no Salmo 19 e nos primeiros capítulos da carta aos Romanos. Saberemos nós ler esse livro e perceber a mensagem de Deus? Ou será que ao olhá-lo baixamos os braços perante os seus traços, que às vezes parecem afastados de Deus, desprezando o exemplo de Moisés? Será que nos empenhamos por tomar a nossa parte na história divina, que não terminou quando o cânon da Bíblia se encerrou, mas continua a ser escrita ainda hoje? Ou será que quando o Filho do Homem voltar não vai mesmo encontrar fé sobre a terra?

13.10.04

Existencialismo (4) 

Já agora... a definição. Aqui fica o artigo da Wikipedia.

11.10.04

Existencialismo (3) 

Já Donald Rumsfeld mostra que não é de todo um escritor existencialista nas suas "Rumsfeld's Rules", onde, entre várias citações, diz o seguinte sobre as dúvidas na escolha do caminho a seguir:

When in doubt, don't. If still in doubt, do the right thing.

Existencialismo (2) 

Este não é um autor existencialista per se, mas também André Gide, logo na segunda página do seu livro Les nourritures terrestres diz o seguinte, em relação às escolhas que cada um é chamado a fazer na vida:

A incerteza dos nossos caminhos atormentou-nos toda a vida. Que direi eu? Toda a escolha é assustadora, quando se pensa nisso: é assustadora uma liberdade que não é mais guiada por um dever. É uma estrada a escolher num país completamente desconhecido, onde cada um faz a sua descoberta e, nota-o bem, não a faz senão para si; de tal modo que o traço mais incerto na mais ignorada África é menos duvidoso ainda. Pomares frescos atraem-nos; miragens de fontes que ainda não ainda não secaram... Mas estarão antes as fontes onde os nossos desejos as fizerem brotar, pois esta terra não existe senão à medida que a forma a nossa proximidade, e a paisagem à volta, pouco a pouco, dispõe-se diante da nossa marcha; e nós não vemos o fim do horizonte; e mesmo junto de nós ela não é senão uma sucessiva e mutável aparência. [...] E tu serás semelhante, Natanael, a uma pessoa que siga, para se guiar, uma luz que ele próprio segura na mão.

10.10.04

28º domingo TC 

Hoje, quer o evangelho, quer a leitura do antigo testamento são sobre o mesmo tema: a cura de um estrangeiro, que vem, por causa disso, a dar graças ao Deus de Israel, e, em ambos os casos, reconhecê-lo como Deus.

Na leitura do antigo testamento, o estrangeiro é um general sírio, que, depois de curado, pede para poder levar terra de Israel para poder adorar apenas ao seu Deus. No novo testamento, são dez leprosos a quem Jesus diz para se irem mostrar aos sacerdotes, e que, no caminho, ficam curados. O único que volta para agradecer, não só é estrangeiro, como é o único a quem Jesus diz "Foi a tua fé que te salvou".

A primeira mensagem aqui é por demais óbvia: a salvação de Deus não se destina apenas a alguns escolhidos, que farão parte de um povo eleito, mas para todos. E até parece que os de fora dão mais valor a essa salvação que os de dentro.

O meu segundo comentário é o de distinguir entre os leprosos que, em obediência a Jesus, foram ter com os sacerdotes, e o samaritano, que, não sendo dessas coisas, viu quem o tinha curado, e correu a reconhecê-lo como salvador. E esse é o único que é salvo, segundo as palavras de Jesus: é nesse reconhecimento consciente de Jesus como salvador, e não apenas na aceitação da cura - que pode ser interpretada como a aceitação de certos valores morais, ou comportamentos - que reside a salvação.

Finalmente, noto que foi aquele que deixou de se dirigir para o templo de Jerusalém e se voltou, em vez disso, para Jesus, que foi aquele que foi completamente salvo. Também hoje, as instituições podem servir para as pessoas que delas fazem parte e que a elas se entregam (os homens sérios da Simone de Beauvoir), mas a verdadeira salvação vem do encontro pessoal, íntimo, silencioso, persistente com Jesus Cristo.

8.10.04

Existencialismo (1) 

Acabei há pouco de ler o livro Pour une morale de l'ambiguïté de Simone de Beauvoiur, de 1947; uma espécie de apresentação simples do existencialismo francês, do qual Jean-Paul Sartre, seu marido, foi um dos maiores expoentes.

O livro afirma então essa "ambiguidade" fundamental como a existência do ser humano sem que esse ser humano tenha o ser, e apresenta todas as acções humanas como um esforço para obter esse ser, essa justificação última da existência, sabendo a priori que essas tentativas são, desde o início, falhadas. Conhecendo porém essa condição, a pessoa humana ganha o ser justamente nessas tentativas falhadas, que portanto são cruciais.

No segundo capítulo ela mostra várias possibilidades de fuga a essa acção moral individual, livre e libertadora, que ela vê acontecer nas pessoas do seu tempo. Uma dessas fugas é a pessoa tornar-se um homem sério, figura moral aliás já descrita por Hegel, Kierkegaard ou Nietzche. É descrita da seguinte maneira:

O homem sério coloca-se como não essencial frente ao objecto, considerado este como essencial; ele abole-se em prol da Coisa, que, santificada pelo respeito, aparece como a figura da Causa: ciência, filosofia, revolução, etc... Mas em verdade esta tentativa é vã, pois a Causa não será capaz de salvar o indivíduo enquanto existência concreta e separada. [...] O homem sério desembaraça-se da sua liberdade pretendendo subordiná-la a valores que seriam incondicionados, ele imagina que a adesão a estes valores o valoriza a si mesmo de uma maneira permanente: cheio de "direitos", ele realiza-se como um ser que escapa à tensão da existência.

Definindo assim o conceito de "sério", mais adiante Beauvoir diz o seguinte:

Sabemos como ao espírito cristão, que era recusa da Lei morta, relação subjectiva do índivíduo com Deus através da fé e da caridade, sucedeu a seriedade da Igreja católica; a Reforma foi uma revolta da subjectividade, mas o protestantismo encarregou-se, por sua vez, de se transformar em moralismo objectivo onde a seriedade das obras substituiu a inquitude da fé.

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