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30.4.04

3º Domingo da Páscoa (C) 

No evangelho deste domingo lemos que Jesus ressuscitado apareceu aos discípulos, que a princípio o não reconheceram. Mas a certa altura perceberam que era ele. «Nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar-Lhe: "Quem és Tu?", porque bem sabiam que era o Senhor.» (João 21, 12) Já algo de semelhante se tinha passado de outras vezes, como lemos nos vários Evangelhos. Maria Madalena, quando o viu, pensou que era o jardineiro (João 20, 15). E Cléofas e outro discípulo (segundo alguns, talvez fosse a mulher dele) que iam para Emaús caminharam com ele umas horas e falaram sobre a Bíblia sem o conhecerem também (Lucas 24, 13-35). Quando na Galileia Jesus apareceu a vários discípulos, alguns duvidaram (Mateus 28, 17), certamente também porque não o reconheceram logo.

Jesus ressuscitado está presente no nosso mundo, mas já não é Homem como nós. É-o muito mais do que nós o somos, sendo já Homem perfeito (Efésios 4, 13), o novo Adão: perfeito como somos chamados a ser, como nenhum de nós o é ainda senão em potência. E nós, preocupados com os nossos critérios terrenos, também o não reconhecemos muitas vezes, porque ainda estamos no estado do primeiro Adão, o terreno, não o espiritual que é Jesus Cristo. Talvez tenhamos a tentação de olhar para os céus, como fizeram os discípulos (Actos 1, 10-11), à espera de ver algo de semelhante à gloriosa visão que nos conta o Apocalipse na segunda leitura, com o Cordeiro no trono a receber o livro e a destar os selos enquanto os seres vivos e os anciãos cantam cânticos e louvam a Deus e os anjos espalham as taças da ira divina sobre a terra. Porém Jesus prometeu que estaria sempre connosco (Mateus 28, 28) e se queremos vê-lo devemos olhar à nossa volta e tentar reconhecê-lo. É que ele está por aí muitas vezes e nós é que o não vemos (Mateus 25, 31-46). Ele vai desatando os selos à nossa frente: e nós? Cantamos com a nossa vida o louvor que ele merece?

PS - Peço desculpa pelo atraso de uma semana...

22.4.04

Islamismo 

Se já o maniqueísmo é normalmente considerado uma religião à parte da cristã e não uma mera heresia, o islamismo, esse, é sempre considerado uma religião à parte. E, contudo, esta religião fundada pelo profeta Muhammad (530-633) pretende em grande medida ser um upgrade do cristianismo (desculpem o anglicismo!) - o islamismo estará para o cristianismo um pouco como este está para o judaísmo.

Os pontos de contacto são muitos: há um só Deus, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, que falou pelos profetas do Antigo Testamento que ele enviou ao povo judeu; Jesus é também considerado profeta e Messias; crê-se na sua ressurreição dos mortos; crê-se na ressurreição no último dia, no inferno e no paraíso (e no purgatório, até, que é um estado temporário que desaparecerá no tal dia do juízo) resultantes de um julgamento de Deus...

Também há pontos de contacto mais folclóricos e superficiais: a criação do mundo em seis dias, a história de Adão e Eva, a existência de anjos e demónios (os primeiros ajudantes de Deus, os últimos avessos à autoridade divina), o nascimento virginal de Jesus, Jerusalém é uma cidade santa...

E contudo as diferenças são fulcrais. O profeta mais importante é Muhammad; Jesus é profeta e messias, sim, mas o papel dele, embora importante, está bem longe de ser central; a sua ressurreição não é o inaugurar duma época nova, a promessa da nossa ressurreição, a vitória sobre a morte e o pecado: é algo encarado de modo bastante secundário também; a própria noção de pecado é bastante diferente, sendo algo de muito mais básico e primitivo que para um cristão: pecado é desobedecer ao que Deus manda, que até são umas coisas simples, cujo cumprimento nos põe em boas relações com ele (lembrando um pouco a visão judaica que S. Paulo ataca, de que seria o cumprimento minucioso das prescrições da lei de Moisés que nos torna justos aos olhos de Deus); e a religião islâmica, com os seus preceitos legalistas de abstinência de álcool e carne de porco, acaba por ser uma religião que prescreve um certo tipo de sociedade e não outro, com certas leis, certas relações sociais, certos traços que, se mudassem, fariam com que a sociedade deixasse de ser islâmica. Nisso difere mesmo muito do cristianismo, que enformou sociedades tão diferentes como a do baixo Império Romano, do Império Bizantino, da Europa Ocidental medieval, da Abissínia, da Arménia. Sim, uma sociedade onde o cristianismo influi acaba por mudar, porque há coisas incompatíveis com a doutrina do mestre, mas não há um plano fixo e imutável como parece haver no caso do islão.

20.4.04

A história de Tomé 

Neste domingo, o evangelho conta-nos a história de Tomé, que, como diz o adágio, quis "ver para crer". Geralmente, Tomé é dado como um exemplo de um mau crente, que não acredita no testemunho dos apóstolos... No entanto, a verdade é que Jesus não o critica (veja-se o texto no link "Leituras dos domingos" aqui à direita). Esta situação lembra-me uma frase central no livro de Job, que, depois de muito falar contra Deus, tem uma revelação, depois da qual confessa "Conhecia-te de ouvir falar, mas agora viram-te meus olhos!" Só depois desta experiência pessoal de Deus é que Job começou a crer num Deus verdadeiro e vivo, e a aceitar a sua situação de pobreza e doença. Também para Tomé, não chegaram a experiência e o testemunho dos outros discípulos, ele tinha que experimentar o ressuscitado por si mesmo. É muito plástica a expressão: fala de meter as mãos nas chagas das mãos e do lado.

Também para cada um de nós devia ser assim. Não deviamos, enquanto cristãos, ficar só pelos testemunhos daqueles que nos precederam na fé. Devíamos exigir de Deus que ele se nos mostre tal como ele é. E, tal como diz Cristo, para isso é preciso insistir, insistir, insistir, como um vizinho importuno. Mas não nos devíamos contentar apenas com actividades emocionantes, ou socialmente importantes, ou culturalmente ricas, nem só com com cerimónias pomposas, ou alegres, ou divertidas. Sem experimentar, com as mãos da nossa sensibilidade e da nossa inteligência, a carne do ressuscitado, estamos a passar ao lado do essencial.

12.4.04

Páscoa  

Ainda não é tarde para desejar (em meu nome, e penso que também em nome do Duarte) uma feliz Páscoa a todos os leitores do Nicodemos. E não venho atrasado, pois a Páscoa dura uma semana de semanas: desde o domingo da Ressurreição até ao Pentecostes. Se a quaresma dura 40 dias, a Páscoa dura 50 (daí a palavra "Pentecostes"), talvez manifestando que á maior a alegria da ressurreição que a morte, como diria São Paulo, que comparava as dores do tempo presente às dores de parto da mulher que dá à luz. Assim como a alegria de ter o filho nas mãos é infinitamente maior que a maior das dores, assim é maior a alegria dos ressuscitados em comparação com os os males deste mundo.

Páscoa feliz!

8.4.04

Quem julgas ser este? (Marcos 4, 41) 

Nos primeiros séculos do cristianismo, esta pergunta suscitou várias respostas diferentes:

* Os ebionitas afirmavam que Jesus era apenas um homem, e que antes de ser gerado no seio de Maria não existia. (Parece que o grande apoio destes era entre os convertidos do judaísmo.)

* Os defensores do arianismo achavam que Jesus era uma criatura, inferior a Deus, ou pelo menos um ser divino, mas sempre inferior ao Pai. Tinha sido criado antes do resto do mundo todo, e tinha incarnado; mas que tinha sido criado, tinha, e portanto houve um tempo em que ainda não existia.

* Os docetistas achavam que Jesus não tinha um corpo a sério. Era só a fingir. Ele tinha enganado toda a gente para acreditarem que estavam a ver e sentir um corpo, mas era treta. Por isso, Jesus não tinha sofrido na Paixão nem tinha morrido de facto. Era só uma ilusão dos sentidos. (Isto era influência dos gnósticos.)

* Apolinário defendia que Jesus tinha tido um corpo, mas não tinha sido a bem dizer um homem, porque não tinha tido uma alma, visto que o Verbo de Deus substituía a alma.

* Os Nestorianos achavam que havia duas pessoas diferentes: a humana e a divina. Se alguma união havia entre o homem Jesus e o Filho de Deus, divino, era uma união moral, que se assemelharia à união entre as várias pessoas de uma sociedade, que num certo sentido forma um todo.

* Os monofisitas achavam que a natureza humana e a natureza divina, em Cristo, se misturavam numa só natureza (fosse por uma mistura, fosse por uma absorção da humanidade por parte da divindade).

* Os adopcionistas achavam que Jesus enquanto homem era filho de Deus apenas por adopção. Uma variante dizia que tinha sido adoptado por Deus apenas na altura do seu baptismo. Até aí, Jesus seria apenas um homem. (Uma variante do monofisismo também atribui a mistira de naturezas à altura do baptismo.)

* Os monotelitas achavam que, embora Jesus fosse humano e divino, tinha uma só vontade, a divina.

* Os modalistas (também conhecidos por monarquianos, patripassianos ou sabelianos) achavam que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são apenas diferentes modos de Deus se revelar (e que em Deus há pois uma só pessoa).

A juntar a isto havia ainda o Marcionismo, que dizia que o Pai, que tinha enviado Jesus, não era o Deus do Antigo Testamento, o qual era um ser divino e bom, mas inferior ao Pai que só Jesus revelava. Logicamente, esta doutrina acabou por ser absorvida pelo Maniqueísmo.

A Igreja acabou por decidir, em sucessivos concílios, que:

* Jesus é verdadeiramente homem (com corpo e alma).
* Enquanto tal é inferior ao Pai e só começou a existir com a incarnação.
* Jesus é verdadeiramente Deus.
* Enquanto tal é igual ao Pai.
* O Espírito Santo é verdadeiramente Deus.
* O Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas distintas.
* Estas três pessoas divinas distintas partilham a mesma substância e a mesma essência divinas.
* Logo, há um só Deus, e não três Deuses.
* O Filho foi gerado pelo Pai fora do tempo (que é, como o espaço, uma propriedade do universo criado), e não criado.
* Jesus é o Filho incarnado.
* Há em Jesus duas naturezas, a humana e a divina, e duas vontades, embora uma só pessoa.
* O Espírito Santo procede do Pai (e do Filho - como defendiam os teólogos do Ocidente -, ou através do Filho - como defendiam os teólogos do Oriente).
* Portanto, as três pessoas divinas são co-eternas.

Esta doutrina é vulgarmente conhecida por doutrina da Santíssima Trindade.

As divergências acima listadas causaram muitas divisões, discussões e até mortes. Desses tempos, ainda restam algumas Igrejas monofisitas (entre os coptas, na Etiópia e no Egipto, e entre os arménios, embora estes últimos tenham chegado há poucos anos a um acordo doutrinal com Roma) ou nestorianas (no Iraque, entre os caldeus). De resto, a doutrina ortodoxa acabou por ser aceite mais ou menos por toda a gente. Mas, depois da Reforma Protestante, alguns recuperaram o arianismo. Foi o caso dos Socinianos ou dos Unitarianos. Este último nome é usado geralmente para todos os que hoje em dia rejeitam a divindade de Cristo.

Páscoa da Ressurreição 

Nos evangelhos que se lêem na Vigília Pascal, na Missa da manhã e na Missa da tarde, ressalta sempre que os discípulos ainda não tinham percebido as Escrituras. Não tinham percebido que Cristo ressuscitaria dos mortos. Jesus tinha-lhes falado disso (nos evangelhos sinópticos é por três vezes que Jesus lhes fala disso; o número quer dizer que Jesus lhes tinha falado muitas vezes do assunto), mas eles não tinham percebido nada. Ainda tinham os olhos fechados.

Provavelmente tinham-nos fechados por causa da mentalidade da época, que esperava no Messias um líder político que livraria o povo do domínio romano. E porque a ideia de que «para quem desce ao túmulo acaba a esperança na Tua fidelidade: só os vivos podem louvar-Te» (Isaías 38, 18-19) estava tão arraigada na mentalidade do povo que, por muito que Jesus dissesse «eu sou a ressurreição e a vida», essa ideia era sempre a de uma coisa longínqua, que haveria de ser um dia, mas algo de difuso, que para já é que não seria de certeza.

E a nós? O que é que nos fecha os olhos? O que é que nos impede de aceitar as Boas Notícias de Cristo, a imagem do Pai, o Profeta, o Vivo, o Ressuscitado, o Deus-connosco? Os nossos pecados cegam-nos, é certo; como? Pensaremos que o amor de Deus só se estende às pessoas de quem gostamos? Pensaremos que no mundo como ele é temos de ser como os outros para sobreviver, sem nos lembrarmos que «quem matar à espada, à espada morrerá»? Pensaremos que os nossos interesses valem mais que os dos outros? Pensaremos que a justiça de Deus é uma mera projecção das nossas frustrações?

E pensaremos que a religião é algo que diz respeito à vida eterna, que nada tem a ver com a nossa vida, que, essa, pode ser como sempre foi, indiferente a Cristo e à ressurreição? Se pensarmos isso, lembremo-nos que «as coisas do alto» a que Paulo, numa das epístolas das missas de hoje, nos recomenda que aspiremos, são coisas que se constroem desde já, neste mundo, agora que somos «pães ázimos», como diz a outra epístola.

(Sobre a leitura bíblica do Antigo Testamento que conta o sacrifício de Isaac, escrevi há uns tempos um belo textozito, que se acha aqui.)

3.4.04

O terrorismo e o pensamento religioso (adenda) 

Adenda: note-se que quando falo de matriz religiosa europeia, concordo com o Campbell: ela não é originalmente cristã. O Cristianismo foi importado do médio oriente e triunfou por conivência com o poder de Constantino, e manteve-se quer por mérito próprio, quer por se apoiar no poder medieval. Diz o Campbell que o pensamento religioso europeu, com a sua preeminência da pessoa humana, só voltou a aparecer na Reforma.

Domingo de Ramos 

Domingo de Ramos. Hoje, queria falar um pouco de um tema na berra, devido ao recente filme de Mel Gibson: quem matou Jesus Cristo?

Segundo o relato evangélico, de facto, o papel principal foi, não dos dos judeus em geral, mas das autoridades religiosas do tempo, do establishment. Aliás, apesar de o terem condenado como blasfemo, a principal acusação perante Pilatos e Herodes foi a de agitador, o que é tipicamente uma preocupação de alguém que se preocupa com a ordem estabelecida, mais do que com a verdade ou as pessoas.

No entanto, e se o sinédrio, os sacerdotes e os levitas foram os protagonistas da condenação, houve mais gente com responsabilidade. Também as autoridades políticas foram coniventes: Herodes por desprezo, Pilatos por medo de Roma, que, ironicamente, já na altura era o centro da ordem estabelecida -- na altura do império romano, hoje do "império" católico. No entanto, até Cristo diz que os que o entregaram a Pilatos têm mais culpa do que ele. Desde o início, ele tentou lutar contra uma situação que ele considerava injusta, mas com a qual no fim foi conivente, apesar da famosa lavagem de mãos.

No entanto, é preciso não esquecer mais um culpado: a multidão. A multidão que, pouco tempo antes, tinha acolhido Cristo triunfalmente, nessa tarde gritava por Barrabás, exigindo a morte de Cristo. Manipulada ou não, a multidão teve um papel muito importante na condenação de Cristo.

A um nível mais generalizante, podemos dizer que foi de facto o pecado humano que matou Cristo: o pecado das autoridades religiosas, que deturparam os mandamentos que tinham recebido, pondo a ordem religiosa antes da verdade, que se encontrava perante os seus olhos; o pecado das autoridades políticas, que não souberam pôr a justiça antes da cobardia ou dos interesses políticos; o pecado da multidão, a quem pouco importa quem morre ou quem vive, quem é condenado ou quem é solto, desde que haja pão e circo, como dizia César.

E é assim, a meu ver, que se pode dizer que fomos nós, pessoas humanas, que estivémos lá nessa tarde fatídica; fomos todos nós, com todos os nossos pecados, que exigimos a morte de Cristo. `

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