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29.2.04

Comentário extra 

A segunda leitura deste domingo é uma das minhas leituras preferidas, daí que, sem desprimor do comentário do Duarte, gostaria de também eu fazer um. Encontrei-a nas Laudes do tempo pascal, e, não sei se por acaso, nesse dia chamou-me mais a atenção. Diz ela que

Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e se acreditares no teu coração que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo. Pois com o coração se acredita para obter a justiça, e com a boca se professa a fé para alcançar a salvação

Há aqui dois tipos de crença, a crença com o coração e a crença com a boca. À primeira vista, poderia parecer que só a primeira importa, que o que é importante é acreditar, de coração, no que Jesus veio propor, independentemente de se "professar com a boca", isto é, de uma pessoa se afirmar cristão. E eu já ouvi alguns cristãos dizer isto: que não importa se se vai à missa, ou se se é católico, protestante, muçulmano, budista, agnóstico, ou mesmo ateu, o que importa é a maneira como nos damos uns com os outros e como pomos em prática a bondade, a caridade, o amor nas nossas vidas. Uma posição bastante consistente com os tempos pos-modernos que estamos a viver, em nada há de solidamente verdadeiro a não ser a dogmática riqueza da diversidade. S Paulo diz que assim se "obtém a justiça", o que a meu ver quer dizer que se encontram justificados aos olhos de Deus, por seguirem, sem o professarem, os ensinamentos de Jesus. Num plano mais simplório, mais próximo das catequeses infantis de antanho, vão para o Céu.

Mas Paulo fala também de "alcançar a salvação", o que se obtém através da confissão com a boca. A meu ver, a confissão com a boca é o aceitar consciente e livre de Cristo como Filho de Deus e salvador das pessoas humanas. É o afirmar-se cristão, e participar nas actividades religiosas da Igreja a que se pertence (católica ou não). E diz Paulo que é apenas com isso que se alcança a salvação, e a meu ver isso é de facto imprescindível: o assentimento consciente a Cristo, não só ao que ele propõe, como à sua condição de Filho redentor, dá-nos a nossa verdadeira condição: a de Filhos de Deus. Os pragmáticos poderão perguntar "E o que é que isso muda na vida de uma pessoa?", ao que eu respoderei que muda muito saber de quem se é filho, que isso muda radicalmente a nossa posição em relação às pessoas humanas à nossa volta, à sociedade humana e ao próprio cosmos. Essa tomada de consciência da nossa verdadeira e altíssima natureza, de filhos no Filho, vivida na relação com as pessoas, com o mundo e com a vida é que constitui a salvação, mais até do que nós formos capazes de fazer com as nossas acções.

É talvez daqui que vem aquela velha ideia que "Fora da Igreja não há salvação", que, teoricamente, está de acordo com isto. Como isto já vai longo, não vou tentar comentar esta frase, mas apenas dizer que, nesta igreja católica que temos, se é que a salvação está lá dentro, é preciso procurar muito muito bem. Às vezes é aí que falta a crença com o coração. Parafraseando Schilebeeckx, eu acho é que fora do mundo não há salvação.

27.2.04

1º Domingo da Quaresma (ano C) 

Hoje ouvimos uma leitura muito bela da carta que S. Paulo escreveu aos Romanos. Eu penso que devemos fazer a nós próprios várias perguntas ao lê-la, ou antes, que este passo da Bíblia nos dirige várias perguntas:
Que diz a Escritura? 'A palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração.' Será que a Palavra de Deus, Cristo, está efectivamente no meu coração? Sabemos que o Espírito Santo foi derramado em nossos corações, e que nós somos templos de Deus. Será que a minha boca evidencia, por aquilo que dizemos, essa presença de Deus dentro de mim? Tenho eu palavras amáveis e amigáveis para os que me rodeiam? Digo a verdade? Tenho palavras responsáveis?
Esta é a palavra da fé que nós pregamos. E eu? Anuncio alguma fé? Ou será que a minha atitude é meramente igual à de todas as outras pessoas? Ou pior ainda? Quem me vir, verá Cristo que vive em mim, pela graça?
Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e se acreditares no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo. Jesus disse que nem todos os que dissessem "Senhor, Senhor" se haveriam de salvar, mas sim os que fazem a vontade do Pai que está nos céus. Confessar com a boca significa não ter vergonha, dar um testemunho; e isto não é estar sempre a falar de beatério. É ter uma linguagem pura, como diz S. Paulo noutra carta; será que eu a tenho? Será que eu confesso Cristo? Uma vez mais, confessar que Jesus é o Senhor não é uma questão de proferir palavras; será que eu o confesso nas minhas acções, nas minhas escolhas, na minha maneira de ser e de estar?
Pois com o coração se acredita para obter a justiça e com a boca se professa a fé para alcançar a salvação. Aqui volta o "acreditar no coração" do versículo anterior: será que eu acredito de todo o coração que Deus ressuscitou Jesus? Ou isso é uma mera concepção que não muda nada na minha vida? Tenho confiança que Deus ressuscita muitas coisas no nosso mundo que, aos nossos olhos, poderiam parecer mortas e não servir para nada? Deus "ressuscita" muitas pessoas que diríamos estarem perdidas, muitas situações que diríamos ser desesperadas... E nós, fazemos alguma coisa para cumprir o plano de Deus, cooperando com ele, e levar a cabo essa ressurreição?
Na verdade, a Escritura diz: 'Todo aquele que acreditar no Senhor não será confundido'. Às vezes poderemos estar confundidos por não acreditarmos no Senhor... porque temos uma fé feita à nossa imagem e semelhança. Porque pensamos que Deus é nosso semelhante. Já nos livro dos salmos Deus nos avisa desse perigo, de imaginarmos um Deus que é apenas uma projecção daquilo que eu acho que devia ser. Mas Deus é maior que o nosso coração, como diz S. João. Em quem é que eu acredito? No "meu" Deus? Ou no Pai de quem Jesus me falou? Nesse Senhor da História que a Bíblia nos revela? E que muitas vezes é diferente daquilo que esperamos, ou daquilo que achávamos à partida que devia ser... tanto assim que muitos judeus do tempo de Jesus não acreditaram nele.
Não há diferença entre judeu e grego: todos têm o mesmo Senhor, rico para com todos os que O invocam. Será que eu aceito que Deus ama os outros como me ama a mim? Nos tempos de Jesus, a diferença era entre judeus e gregos, mas hoje em dia temos tendência a tomar nós o papel de "judeus" e a arranjar outros "gentios" a quem desprezamos... Estrangeiros, pessoas de outras opiniões, desempregados... Será que eu sou assim? Jesus lembrou-nos que o nosso Pai dos Céus faz brilhar o sol e faz cair a chuva sobre todos, justos e injustos. Talvez eu não goste de alguém por algum comportamento que até é errado, ou pecaminoso, ou incorrecto. Deus ama todos por igual, o que não quer dizer que ame os nossos pecados (se fosse assim, Jesus não tinha morrido para nos libertar deles). Mas apesar dos pecados, Deus continua a amar todos. Eu eu? Será que não sou como aquele servo da parábola que Jesus contou, a quem o rei (Deus) perdoou uma grande dívida (muitos pecados), mas não queria perdoar uma dívida que tinha para com ele outro conservo?
Portanto, todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Invoco eu o nome do Senhor? Invocar não é ter sempre o nome de Deus na boca, a propósito e a despropósito; a Bíblia também diz para não invocarmos o santo nome de Deus em vão. Também não devemos pensar que esta salvação é algo de automático: invocamos a Deus, e pronto, já está! À força de ver que isso não é assim, muitos caem na incredulidade, e pensam que invocar Deus não serve para nada. E eu, invoco o nome do Senhor nas minhas acções, escolhas, actuações?

A Liturgia das Horas na Quaresma 

Na Quaresma, somos chamados entre outras coisas a uma oração mais intensa. Em louvor da mais venerável das orações, a Liturgia das Horas ou Ofício Divino, encontrei este belo trecho de um autor anglicano:

«O Ofício Divino é uma parte inestimável da vida cristã, uma grande salvaguarda contra ideias distorcidas e devoções de mentes débeis, um grande instrumento de sobriedade, paz, inteligência, e profundidade de religião. É um culto de adoração calma e meditativa, de meditação, de aprendizagem, de recordação e de reflexão. Nele há muito descanso, muito tempo para ponderar, e rezar, e para descansar em Deus da tensão da vida mundana, derramando as nossas almas no brilho dos céus, bebendo da atmosfera de feitos e pensamentos santos de outrora, fortalecendo a nossa vida interior pela comunhão da oração em comum, e elevando corações tranquilos em piedade e gratidão para com o Deus de nossos pais.»
Percy Dearmer, Everyman's History of the Prayer Book, ch. 12

23.2.04

7º domingo TC 

Amai os vossos inimigos,
fazei bem aos que vos odeiam;
abençoai os que vos amaldiçoam,
orai por aqueles que vos injuriam.
A quem te bater numa face, apresenta-lhe também a outra;
e a quem te levar a capa, deixa-lhe também a túnica.
Dá a todo aquele que te pedir
e ao que levar o que é teu, não o reclames.
Como quereis que os outros vos façam,
fazei-lho vós também.


Esta é talvez a leitura mais revolucionária do evangelho, em termos de moral. Tal como a da semana passada, não pode ser interpretada literalmente, mas com cabeça e discernimento. Já agora, e a propósito de interpretações literais, há um filme agora em cena, chamado 21 Gramas, em que um cristão fanático, de uma seita, interpretando esta leitura à letra, obriga a filha a levar um segundo estalo do seu irmão, que lhe tinha batido numa das faces.

Esta leitura, mais ainda à luz da primeira leitura, em que David poupa a vida de Saul, seu inimigo, é uma resposta notável à lógica da guerra e da violência, do olho por olho, dente por dente, que ainda prolifera quer entre nações, quer entre grupos sociais, quer entre pessoas. Este texto pede que essa lógica seja substituida por outra, que é capaz de ver no agressor (seja um estado, um grupo, uma pessoa) um irmão, ainda que escondido por baixo de um comportamento violento, e portanto passível de conversão, mais do que merecedor de um castigo de igual violência e sentido contrário. Aliás o uso dessa violência diminui-nos mesmo a nós, por ser um comportamento indigno de pessoa de paz, de Filhos de Deus. Como li nalguns textos contra a guerra recente contra o Iraque, é necessário que se comece a ver a guerra como algo obsceno.

O próprio Jesus, tal como diz S Paulo, não se valeu da sua condição divina, mas deixou-se matar, respondendo à violência que sobre ele foi exercida com a certeza do amor do Pai, que o ressuscitou, abrindo assim uma nova porta de paz ao género humano.

Mais uma vez, convido à leitura dos comentários do link "leituras dos domingos", aqui à direita.

18.2.04

6º Domingo TC (B) 

Neste domingo ouvimos, no Evangelho, as belas bem-aventuranças segundo S. Lucas (6, 20-26), e talvez nos assuste ouvir aqueles ais de Jesus, que diz: ai de vós, os ricos!, ai de vós, que estais saciados!, ai de vós, que agora rides!, ai de vós quando todos vos elogiarem!

Jesus veio revelar-nos que Deus é um Pai que nos ama. Já no Antigo Testamento os profetas o tinham dito, mas mesmo agora, depois de esse amor de Deus sse ter revelado em Jesus, que morreu por nós sem que nós de algum modo o merecêssemos, continuamos muitas vezes a ter a visão mais antiga do Antigo Testamento, encarando Deus como um ser que nos castiga se nós não o aplacarmos. Contudo, por vezes, em vez de substituirmos essa imagem errada de Deus (esse ídolo) por aquilo que Jesus nos veio relevar, arranjmos antes outra imagem, bem mais simpática aos olhos dos nossos dias, de um Deus para o qual tudo está bem, que como gosta de toda a gente há-de safar todos, e que por nos amar nos atura todas as birras, pelo que podemos fazer tudo o que nos apetecer, que isso não traz problema nenhum.

As palavras de Jesus são muito sérias, e incitam-nos a não pensar levianamente na nossa vida, nem a tomar decisões e atitudes irreflectidas. As nossas acções têm mesmo consequências, e as nossas opções de vida podem trazer-nos felicidade eterna ou felicidade passageira. Talvez até nenhuma das duas, e, se não será impossível que haja casos em que possamos ter ambas ao mesmo tempo, há situações em que se impõe uma escolha.

Não é porque Deus se zangue e ande por aí a castigar-nos, como um homem que se zanga. São as nossas acções que são mesmo assim, e têm mesmo essas consequências. Jesus duma vez disse: «o Pai não julga ninguém, mas deu ao Filho todo o poder de julgar» (João 5, 22); e depois disse: «se alguém ouvir as minhas palavras, e não crer, eu não o julgo, porque eu não vim para julgar o mundo, mas para o salvar; quem me rejeitar a mim, e não receber as minhas palavras, já tem quem o julgue: a palavra que tenho pregado, essa o há de julgar no último dia» (João 12, 47-48). O julgamento, portanto, é feito por nós mesmos, e com os nossos critérios, como disse também Jesus: «com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós» (Mateus 7, 2).

Peço desculpa pelo atraso com que ponho esta mensagem, face ao domingo a que diz respeito.

16.2.04

Crónica antiga 

Ando agora a ler o livro Anos Perdidos, um livro de crónicas de Miguel Sousa Tavares, escritas entre 1995 e 2002. O excerto que se segue é de uma crónica de 1996, sobre a situação em Timor, e relação da Igreja Católica com essa situação. É escrito já depois da atribuição do Nobel a Ximenes Belo, mas ainda antes do referendo que deu a auto-determinação a Timor. Como poucos textos, este excerto (e perdoem-se a extensão, mas pareceu-me magnífico) mostra muito bem a diferença entre a Igreja Católica da hierarquia, que neste momento é confrangedoramente conservadora e rígida, e a Igreja Católica dos católicos que lutam no terreno por uma vida melhor para os pobres, uma moral e um culto mais adequados às realidades da vida e à sensibilidade dos homens. Diz Sousa Tavares que serão esses que salvarão a Igreja Católica depois destes tempos obscuros. Deus o oiça.

[...] Recebemos em festa e por duas vezes o Papa, como se ele não fosse um dos principais coniventes da Indonésia, e até, na mesma semana em que D. Ximenes recebe o Nobel da Paz, recebemos tranquilamente a visita desse farisaico cardeal Ratzinger, expoente da Igreja de Woytila, a Igreja anti-Vaticano II, a Igreja que traiu Timor, a Igreja cujo Papa se passeou em Díli rodeado de generais indonésios com as mãos sujas de sangue, mas virou as costas ao bispo e aos que, em Timor, sofrem em nome do mesmo Cristo de João Paulo II.

Ratzinger, em Fátima, a curar dos peregrinos e dos milagres e a dizer que desconhece a questão de Timor, é bem o símbolo do triunfo da fé sobre a justiça, da hierarquia sobre o povo de Deus.

Nem sequer o facto de pela primeira vez, que me lembre, um homem da Igreja Católica ter recebido o Nobel da Paz, mereceu ao Vaticano uma palavra de contentamento que fosse. Nada que pudesse perturbar a inauguração do Cristo-Rei de 27 metros de altura que o usurpador Suharto foi inaugurar a Díli, três dias depois. Nisto, João Paulo II sempre foi claro, em Timor e em todo o lado: prefere os ícones aos homens, prefere a liberdade de culto à justiça, prefere as orações à revolta. E, todavia, como disse D. Januário Torgal Ferreira, o Nobel atribuído a D. Ximenes é uma lição moral para toda a Igreja. Mas enquanto o Papa vir um comunista em cada resistente timorense e um contratempo diplomático em cada homilia do bispo de Díli, nada haverá a fazer. Ele continuará a negar Timor, tal qual como Pedro negou Cristo.

Lamento muito. Outros acharão João Paulo II um Papa magnífico, um homem infinitamente bondoso, o pastor de que a Igreja precisa. Quanto a mim, ele foi a pior coisa que sucedeu à Igreja Católica desde o pontificado de Pio XII. Com Woytila, a Igreja recuou meio século, e nesse recuo, ao separar-se do mundo dos homens, abriu um vazio por onde entrou, ou o egoísmo que caracteriza as sociedades modernas, ou o fanatismo de outras religiões ou a paranóia das seitas. Felizmente, existe outra Igreja, ou existe, melhor dito, uma parte hoje submersa da Igreja, que manteve intacta a esperança e o diálogo com os homens. Existe em África, na Índia, no Brasil ou nos bairros de lata de Lisboa. São padres, bispos e leigos que se revoltam com a justa revolta dos fiéis, que desafiam os poderosos, que aplicam a doutrina e, como suplemento de alma, oferecem a fé. Essa diferença, representada, por exemplo, em toda a diferença que vai entre o Padre Edgar Silva, da Madeira, e o Bispo do Funchal, é o que fará a Igreja Católica levantar-se outra vez, quando estes tempos obscuros tiverem passado. Porque, se Timor continua católico ainda hoje, e católico como poucos países o são, não é porque Suharto o consinta, ou porque o Papa lá tenha estado umas horas a distribuir bençãos. É porque dois bispos, sucessivamente, se mantiveram sempre firmes e solidários com o seu povo, mesmo que abanadonados e traídos por Roma.

14.2.04

Freitas do Amaral sobre o aborto 

Saiu esta semana na revista Visão um ensaio de Freitas do Amaral sobre a questão do aborto, que me pareceu uma das posições mais equilibradas e bem informadas que já vi. O artigo, chamado Proposta sobre o aborto – Como despenalizar a mulher que aborta sem descriminalizar o aborto, Freitas do Amaral critica as posições extremas, quer da esquerda, quer da direita (curiosamente, do partido que ajudou a fundar – cria a gente um filho para isto), e faz um enquadramento judicial da questão, tendo em conta o Código Penal. À falta dum link para a totalidade da entrevista, deixo aqui um extracto.

O nosso Código Penal – como, de resto, os de todos os países conhecidos – já comporta uma abertura para tal posição jurídica: na verdade, no seu artigo 35º, esse Código (de 1982, governo da AD!) fala-nos da figura do “estado de necessidade desculpante”. Quem praticar um crime para afastar um certo mal maior “quando não for razoável exigir-lhe comportamento diferente”, age sem culpa; é portanto desculpado do facto ilícito que cometeu; o facto continua a ser ilícito, mas o agente não será punido. No plano objectivo, há um ilícito; no plano subjectivo, faltando a culpa, não pode haver punição.

Não poderão a Esquerda e a Direita aceitar que, em vez de se decriminalizar o aborto, se despenalize a mulher que aborta, em “estado de necessidade desculpante”? [...]
Mas então, perguntar-me-ão: afinal, poderá haver casos – embora raros – em que o aborto seja mesmo punido? Responderei honestamente que sim: serão aqueles (poucos) casos em que a mulher decide abortar, não por absoluta necessidade e sem culpa, mas por capricho, ou por dinheiro, ou por qualquer outro motivo fútil[...]

A minha proposta é esta – e fica feita. Se não lhe quiserem pegar, não serei eu decerto o mais prejudicado. Outros (ou outras) pagarão o preço da intransigência radical de políticos, de Esquerda e de Direita.


Vale a pena ler o resto – é só apanhar uma edição desta semana da Visão.

10.2.04

O bem e o mal 

Este texto que se segue, escrevi-o para uma mailing list a que pertenço, na qual uma amiga minha colocou uma mensagem que continha a afirmação citada abaixo. Escrevi sem referências explícitas a Cristo, pois a mailing list não é, ao contrário deste blogue, católica.

> Quem está certo? Quem está errado? Depende de onde
> nascemos, da
> cultura que nos inculcaram, do que vimos, do que vivemos. Não há
> errado, há diferença!

Aqui está algo com que não posso concordar. Eu penso que há verdades objectivas no campo da moralidade, do certo e do errado, do bem e do mal.

É verdade que várias culturas diferentes têm noções diferentes sobre o que está certo ou errado, ou o que é bom ou mau. Mas não penso que seja aceitável dizer que isso é algo de completamente incerto, uma mera diferença a encarar como uma diferente cor do cabelo ou uma regra diferente sobre o lado da estrada em que os carros circulam.

Houve e ainda há sociedades onde se tolera o infanticídio; onde as mulheres são vendidas pelos pais; onde se pratica a excisão feminina; onde o marido tem direito de matar a mulher se assim lhe aprouver; onde se discriminam pessoas pela sua filiação (como na Índia, onde apesar da proibição legal muitas pessoas da casta dos intocáveis são tratadas pior que animais); onde os criminosos de pequenos delitos são executados ou sujeitos a penas desumanas; onde os militares derrotados devem ser mortos... Para quê continuar? Devemos olhar para tudo isto e dizer: não há em tudo isto nem certo nem errado; são apenas diferenças?

Sem dúvida que todas as sociedades têm de passar por vários graus de desenvolvimento, não só económico mas também social. Sem dúvida que há questões que são irrelevantes ou indiferentes. Mas há outras que não o são. E sem dúvida que em certas sociedades menos desenvolvidas são talvez toleráveis atitudes e instituições que noutras mais desenvolvidas já o não são. Eu admitirei que a pena de morte será um exemplo. Mas deveremos nós olhar para tudo isso e encolher os ombros perante tais «diferenças» e considerá-las indiferentes? Não: devemos esforçar-nos por alterar o estado de coisas na medida do possível. Se assim fosse, ainda hoje haveria legalmente no nosso país escravatura, amputação de membros, enforcamentos!

Sem dúvida que aquilo que está certo ou errado nem sempre é claro. Sem dúvida que o nosso entendimento do bem e do mal nunca consegue chegar a ser objectivo e imparcial. Sem dúvida que a nossa educação, a nossa cultura, as nossas experiências influenciam a nossa percepção das questões éticas e morais. Mas isso não quer dizer que não possa haver objectividade, nem que se não possam alcançar conclusões, nem discuti-las, nem alterar os pontos de vista que os outros têm. Em suma: não significa que o bem e o mal não existam. Ainda que o mundo seja -- como na realidade é -- não a preto e branco mas sim em graus de cinzento, e ainda por cima difusos e difíceis de distinguir.

Negar que o bem e o mal existem é uma solução aparentemente fácil para lidar com as questões morais. Para quê ralarmo-nos? Mas esse desistir de alcançar a verdade é tão absurdo, triste e condenável como é absurdo, triste e condenável o esforço oposto, que alguns infelizmente fazem, de julgar que o bem e o mal são claros e distintos de modo absoluto e inquestionável, seja por interpretação literal de um texto que se apresenta como sagrado, seja por mera obediência cega a um ou mais líderes religiosos ou políticos, ou seja por mera divinização e dogmatização da opinião pública ou de valores tradicionais.

A "lei do véu" (actualizado) 

Tudo indica que hoje seja aprovada no parlamento francês, por larga maioria, a lei que proíbe a exibição de sinais religiosos ostentatórios nas escolas públicas. Isto inclui, especialmente, o véu islâmico, mas também as kippas judaicas e as cruzes de grandes dimensões.

O processo que levou a esta lei teve o condão de pôr de acordo as três religiões monoteístas: todas a condenam. Parece-me a mim, no entanto, que a opinião pública francesa apoia isto maioritariamente. Julgo que as razões principais serão o combate ao isolacionismo religioso, e a criação de guetos religiosos nas escolas. Nesse ponto de vista, a lei favoreceria a integração das comunidades.

Mas a que preço? Não se podem esbater diferenças obrigando as pessoas a escondê-las. E que dizer dos fiéis do islão em França (que são cerca de 5 milhões, metade de Portugal), já vivendo muitos em condições menos dignas, como evitar que eles vejam isto como mais uma imposição restritiva do poder central, mais uma forma de opressão?

E, à laia de epílogo, a França e a Inglaterra falam em por-se de acordo em formar uma força europeia de intervenção em cenários de deserto, montanha e selva. Quem irá esta gente combater no deserto, poderão perguntar-se os árabes em França? Ou talvez nem se perguntem: talvez já saibam a resposta.

Para mais, veja-se a notícia no público, e, mais uma vez, a opinião do D Januário na recente entrevista.

Actualização: Veja-se também a notícia na revista Visão.

8.2.04

Sobre o aborto (3 de 3)  

Ainda que já me tenham devolvido a minha edição do Concílio há algum tempo, só agora termino a série de posts sobre o assunto.

O Concílio fala do aborto duas vezes, ambas na Gaudium et Spes (o documento sobre o papel da Igreja no mundo moderno). Cito a passagem mais explícita, que põe o aborto ao lado de uma quantidade de outras coisas, e que portanto o enquadra num contexto de respeito total pela vida humana, com citações de situações ainda oportuníssimas (quando o Concílio foi nos anos 60).

Sobretudo nos nossos dias, urge a obrigação de nos tornarmos o próximo de todo e qualquer homem, e de o servir efectivamente quando vem ao nosso encontro – seja o ancião, abandonado de todos, ou o operário estrangeiro injustamente desprezado, ou o exilado, ou o filho de uma união ilegítima que sofre injustamente por causa de um pecado que não cometeu [...]

Além disso, são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis.
(GS 27)

Na mesma linha, aliás, o bispo D Januário disse na entrevista que linquei recentemente, que não conseguia deixar de considerar o aborto como um crime, pela sua gravidade, e que se isso é questão de consciência, não o será menos roubar um banco.

5º domingo do TC 


Os pescadores tinham deixado os barcos
e estavam a lavar as redes.
Jesus subiu para um barco, que era de Simão,
e pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra.
Depois sentou-se
e do barco pôs-se a ensinar a multidão.


Hoje, não farei mais do que reproduzir e desenvolver uma ideia que ouvi na homilia de ontem, que me pareceu extraordinária — como de costume, recomendo o link das leituras dos domingos para uma análise mais detalhada do texto.

Chamou o padre a atenção para o facto de Jesus se ter posto a ensinar de dentro de um barco, uma posição mais instável que com os pés na terra, num pedestal por exemplo. Jesus escolheu essa posição menos firme, tal como na sua pregação escolheu posições que não se coadunavam com a firmeza rígida das ideias feitas dos religiosos do seu tempo. Escolheu não ter o apoio do pedestal das estruturas religiosas da época, e fazer uma pregação inovadora, fresca, cheia do Espírito Santo, que o deixou de facto numa posição menos apoiada, mesmo periclitante, e que aliás o levou à morte.

Isto é tão obviamente um desafio para os cristãos de hoje, que nem vou dizer mais nada.

2.2.04

4º Domingo TC (B) 

A primeira leitura de hoje foi escolhida para condizer com o Evangelho. Jesus não foi bem aceite na sua terra, em Nazaré; do mesmo modo, Jeremias não foi bem aceite pelo seu povo. Ele trazia uma mensagem de paz e de bom senso num tempo em que todos se preparavam para a guerra e para a revolta.

Nessa leitura vemos que o profeta percebe que o Senhor lhe confiou uma missão: «Antes de te formar no ventre materno, Eu te escolhi; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei e te constituí profeta entre as nações.» Podemos perguntar-nos: não será que Deus foi injusto? Então ele escolheu assim Jeremias, coitado, que se calhar não queria pregar, e não lhe perguntou nada; foi só depois dizer-lhe: vai lá, e faz o que eu quero?

Na verdade, Deus tem um plano para cada um de nós. Mas sabemos que é um plano que ele quer levar a cabo connosco, não contra nós nem apesar de nós. Vejamos o caso da mãe de Jesus: tinha uma missão ainda mais importante e crucial que a do profeta Jeremias, e não foi por isso que Deus deixou de arriscar todo o seu plano pondo-o nas mãos dela. É que ela podia não ter amado o filho que teve; podia tê-lo educado mal; podia não se ter improtado com ele... Deus correu muitos riscos ao incarnar, sem dúvida. Talvez a mãe de Jesus pudesse tê-lo rejeitado como mais tarde os habitantes de Nazaré o fizeram. Na Bíblia, Lucas ensina isso claramente mostrando-nos Maria a dizer que sim a Deus, e dizendo que a sua palavra se podia cumprir nela. E só então é que Gabriel se retira da sua presença.

Mas Maria podia ter dito que não... e este dizer que não não é evidentemente uma mera palavra dita a anjo: teria sido um dizer que podia ter acontecido tantas vezes! Quando Jesus nasceu, quando cresceu, quando preferiu ficar no templo com os doutores, quando José morreu, quando Jesus foi ser baptizado, ou pregou, ou morreu na cruz... E não foi só assim com Maria: também foi assim com Jeremias: Deus podia bem tê-lo escolhido ainda antes de nascer para ser profeta, mas se ele não tivesse tido a coragem de enfrentar os que troçavam dele quando ele falava no templo, os que fizeram com que o seu primeiro livro de profecias fosse rasgado e queimado, os que o lançaram num poço seco para morrer à fome, os que o raptaram depois do assassínio do governador Godolias, os que não queriam saber da pregação que ele levou a cabo no Egipto... se não fosse isso, o plano de Deus teria sido gorado.

É que Deus depende de nós! No presépio vimos, há pouco, no Natal, Deus feito um menino indefeso. E ainda hoje Deus depende de nós. A nossa vida não está toda pré-programada à partida. Deus tem uma missão para nós, sim! Um plano, decerto diferente dos que tinha para Jeremias e para Maria, mas tem um plano. Mas nós temos o poder de o cumprir e o poder de o rejeitar. O plano de Deus, como explica S. Paulo, é transferir-nos para o reino do seu amado Filho; mas João diz que o poder de nos tornarmos filhos de Deus é concedido aos que crêem no seu nome apenas. Os que não receberam a luz que Deus nos enviou em Cristo, não se tornam filhos de Deus, mas permanecem nas trevas.

É uma boa ocasião para rezarmos a Deus, para vermos se damos com o plano que ele tem para nós, e para revermos a nossa vida para nos assemelharmos não aos habitantes de Nazaré que gostaram tanto da pregação de Jesus que até o queriam atirar por um barranco, mas a Maria, que disse, com a sua vida, que sim ao plano que Deus tinha para ela.

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