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31.10.03

Haloween 

A festa nos Estados Unidos tornou-se uma mistura de festa de filmes de terror com mascarada infantil, já com uma faceta bastante comercial. Os católicos celebram o dia de todos os santos, e logo a seguir, o dos fiéis defuntos. Em ambos os casos, há uma lembrança dos mortos, aos quais se associa tradicionalmente o mês de Novembro. Julgo que isto se trata de adaptações de rituais antigos de invocação dos mortos no tempo das sementeiras, para que eles, tendo voltado para dentro da mãe-terra, ajudassem as culturas a crescer. Tivesse eu aqui os meus livros, mais vos diria...

30.10.03

Papabili 

A TSF online tem um site com uma lista dos possíveis futuros papas, com uma pequena descrição de cada um. Eu assustei-me ao saber que já há um site de fãs do Ratzinger na net!... 'Bora fazer um para o Martini?

Reinhold Niebuhr 

O senhor em epígrafe é um dos mais conhecidos teologos protestantes do século XX. Tem um livro que se tornou famoso, The Nature and Destiny of Man, consistindo em dois volumes de palestras recolhidas. Sendo americano, tem opiniões sobre o intervencionismo (uma constante na história dos Estados Unidos) dum ponto de vista chamado realista, que quer dizer, sucintamente, que uma acção pode ser moralmente reprovavel, mas necessária. É um princípio parecido com o princípio do mal menor de Sto Agostinho, ainda que me pareça que o Niebuhr o use com demasiada liberdade. Em contraste, o nosso Papa teve uma atitude muito clara, e correcta a meu ver, em relação à recente intervenção americana no Iraque.
Deixo o link para um artigo sobre ele na excelente revista Atlantic Monthly.

As mulheres e o Islão na Argélia 

Saiu hoje uma notícia no jornal Ouest-France sobre o assunto.

28.10.03

Afinal não termino aqui a minha contribuição para este blog, pois o Duarte convenceu-me a ficar. PF.

27.10.03

Deus salva-nos por meio de Jesus Cristo, não por meio de uma organização 

Julgo que a Igreja ganharia muito se os cristãos aprendessem a história, a organização e a doutrina das Testemunhas de Jeová. O menor dos ganhos seria que mais gente saberia refutar aquelas doutrinas com que as TJ conseguem confundir alguns cristãos (coisas como: negar a divindade de Cristo ou a imortalidade da alma).

Na verdade, as TJ são uma seita que, apesar de se ter originado a partir do protestantismo (mais exactamente, a partir do milenarismo adventista americano do século XIX, que mergulha as suas raízes, duma maneira ou doutra, no puritanismo), se transformou a ponto de hoje ser bastante parecida com o catolicismo. As TJ dizem que não são protestantes, e os protestantes concordam: ambos têm razão. As TJ ainda têm algumas semelhanças com o protestantismo, mas residuais.

As semelhanças com o catolicismo começam pela sua organização: apesar de provirem de meios presbiterianos, agora têm uma hierarquia de diáconos - presbíteros - bispos (nomes esses que traduzem para servos ministeriais - anciãos - superintendentes), e, mais importante ainda, têm também um magistério infalível. Não lhe chamam magistério, nem dizem que é infalível, mas é esse o papel desempenhado pelo Corpo Governante das TJ. A fundamentação bíblica que as TJ usam para justificar o seu CG também não tem nada a ver com a doutrina católica sobre o magistério, mas isso são diferenças de pormenor.

O importante é que o CG é, de facto, um magistério infalível. E, ao contrário do católico, que só se pronuncia pontualmente, e quase nunca recorrendo à infalibilidade, o CG das TJ pronuncia-se pelo menos quinzenalmente numa interminável diarreia de artigos publicados em «A Sentinela», revista que todos conhecemos, artigos esses que devem ser acatados por todas as TJ como se fossem infalíveis. A isto acrescem os livros e as cartas enviadas em nome do CG: tudo deve ser aceite sem questionar.

É que entre as TJ não pode haver diferenças de opinião. Quem duvidar do CG (a quem chamam o escravo fiel e discreto designado por Jeová para prover alimento espiritual a toda a sua organização visível na Terra) ou das suas instruções, facilmente será olhado de lado; e se a divergência não for bem pequena a pessoa será apresentada a um tribunal eclesiástico. Esses tribunais, chamados comissões judicativas, excomungam (aliás, desassociam), ao que parece, cerca de 2% das TJ todos os anos!

Mais ainda: se alguém for desassociado, as TJ deixam de poder falar com essa pessoa; não podem sequer cumprimentá-la. Isto mesmo se se tratar de alguém de família. Por estas razões, entre outras, é que as TJ são razoavelmente consideradas uma seita, uma organização religiosa que padroniza os seus membros e lhes nega o direito de terem actividade intelectual própria, que pretende ser a dona da verdade absoluta (tão absoluta que quem duvidar dela é prontamente expulso).

Aplicações à Igreja Católica

Pensemos agora nós, católicos, no papel do Magistério do Papa e dos bispos. Alguns católicos, infelizmente, parece quererem encarar assim o Magistério: como se fosse algo de absoluto, permanentemente infalível, com o qual se haja de exigir identificação perfeita. Ainda há dias ouvi um presbítero dizer a respeito do Papa: "Eu não me considero capaz de questionar nenhuma das suas decisões. Só posso aceitá-las incondicionalmente e pedir a Deus para que o ilumine sempre."

Que grande ofensa a Deus! Alguém que faça isto está a desprezar a inteligência que Deus lhe concedeu; a enterrar na terra, como o servo mau da parábola de Jesus, os talentos mentais que o Senhor lhe confiou. Aliás, se todos se limitassem a seguir, como brutos irracionais, os pronunciamentos do Magistério, será que ele alguma vez seria o que é hoje? Não! O Magistério, que nem sempre é infalível, já mudou de opiniões e de disciplinas tantas vezes que é óbvio que as coisas não são assim. Muitos clérigos, felizmente, não abdicam de pensar, e esforçam-se por melhorar a Igreja. Prouvesse a Deus que todos fôssemos assim!

Claro que o Magistério da Igreja tem um importante papel, e sem dúvida que é guiado pelo Espírito Santo, e que por vezes, satisfeitas certas condições, pode ser infalível: mas nada disso nos alivia da obrigação de pensar! É muito fácil abdicarmos de pensar. No mundo de hoje por vezes é muito difícil e angustiante fazer escolhas e ter opiniões. Como o mundo muda rapidamente, alguns sentem-se sem nenhuma referência segura, como que em queda livre. Deve ser por isso que alguns querem encarar o Magistério da Igreja desse modo.

Então não nós dá Deus um ponto de referência? Sim, dá. Ele próprio é a nossa "rocha firme", como dizem os salmos, sobre a qual nós, todos os cristãos, edificamos um templo. Mas Cristo é que é a "pedra angular" sobre a qual esse templo vivo, que somos nós, a Igreja, está edificado! Livremo-nos de uma Igreja que se tenta substituir a Cristo! De uma Igreja que dá mais importância às suas disciplinas e normas internas que ao Evangelho! De uma Igreja que actua como se os seus pronunciamentos fossem superiores à Bíblia! De uma Igreja cuja estrutura organizativa se coloca acima do Espírito Santo! De uma Igreja que se esforça por se conservar enquanto organização, com as suas prerrogativas e poderes, e para isso despreza o sangue daquele que o derramou para a salvar!

Penso que isto é uma das coisas mais importantes que podemos aprender das TJ. A organização deles é assim, muito mais que a Igreja Católica. Quando vejo católicos que querem impor uma uniformidade absoluta a todos os seus irmãos e irmãs na fé, e expulsar os dissidentes, percebo que o que eles querem ser é Testemunhas de Jeová. Querem ter uma verdadezinha absoluta ao seu alcance. Não sejamos assim.

Literatura sobre as TJ

Concluo listando alguns livros sobre as TJ, porque, como é óbvio, nunca poderia dizer tudo sobre elas num texto dum blogue. Aviso prévio: a maioria da literatura católica sobre as TJ é uma porcaria. Foi escrita por pessoas que só conhecem superficialmente a seita. Exemplo paradigmático é um livreco português, chamado "Resposta às Testemunhas de Jeová baseada na Bíblia", escrito por um padre que claramente não sabia o que estava a fazer. Se eu conhecesse pior a Bíblia, e só tivesse esse livro e um livro como os "Raciocínios à base das Escrituras" das TJ, sem sombra de dúvida que eu seria TJ! Na verdade, a tal "Resposta..." não responde a coisíssima nenhuma: o autor só conhecia alguma da doutrina e da organização das TJ, e essa mal; os argumentos que usa são cilindrados em qualquer publicação das TJ.

* Apocalipse adiado - por James Penton - Este livro foi escrito por um professor universitário de História que já foi TJ. Alguns capítulos estão disponíveis em português aqui. Confesso que só li esses capítulos, e nunca li o resto; mas esses são uma boa introdução às TJ para quem não conhece a seita.

* Crise de consciência - por Raymond Franz - O autor foi membro do CG das TJ e depois teve uma crise de consciência. As TJ acabaram por desassociá-lo. Este livro formidável e muito bom, escrito na primeira pessoa, conta como isso foi. O mais notável é que o livro está escrito sem rancor e de forma objectiva, apesar de o autor ter razões de queixa da seita de que já foi um dos líderes. A organização dos assuntos foi feita a pensar num leitor que seja TJ, mas mesmo assim quem não é TJ lê o livro muito bem. Alguns capítulos estão disponíveis em português aqui, e outros em espanhol aqui. (Já li o livro inteiro em espanhol; estava na net mas agora não o encontro: talvez tenha havido problemas de copyright.)

* Em busca de liberdade cristã - por Raymond Franz - Neste segundo livro o autor desmonta muitas doutrinas específicas das TJ (coisas como a proibição de levar transfusões de sangue, ou a obrigação de pregar pelas casas das pessoas). Está uma vez mais escrito de forma equilibrada e serena. Alguns capítulos estão disponíveis em português aqui, e muitos outros em espanhol aqui. Novamente, só li estes bocados.

* Os tempos dos gentios reconsiderados - por Carl Jonsson - O autor fez uma pesquisa sobre uma doutrina basilar das TJ: a de que Jerusalém foi conquistada pelos babilónios em 607 AC (e não em 587 AC, como se pode ler em qualquer livro de História). Descobriu que isso era mentira e portanto foi desassociado. Não deixa de ser interessante como um mero pormenor cronológico é fulcral para imensas doutrinas defendidas pelas TJ. Este livro prova de várias maneiras diferentes que Jerusalém foi mesmo destruída em 587 AC. Alguns capítulos estão disponíveis em português aqui. Novamente, só li estes bocados.

Estes são, diria eu, os livros mais importantes. Aqui vão mais três menos importantes:

* Visões de glória - por Barbara Grizutti - A autora foi TJ e depois converteu-se ao catolicismo. Neste livro conta a história dela, a história das TJ e expõe a sua doutrina, alternando os assuntos, com grande maestria literária. O livro está desactualizado (já é antiguinho, e o CG das TJ de vez em quando mudam a doutrina - e todas as TJ têm de mudar de crença simultaneamente, porque, afinal, foi o CG que disse) mas a história da autora merece ser lida. O livro está disponível em inglês aqui.

* Trinta anos escravo da Torre de Vigia - por Schnell - Outro livro antiguinho mas que conta muitas coisas de outros tempos. Infelizmente está escrito com algum rancor por parte do autor. Alguns capítulos estão disponíveis em português aqui, e o livro todo em espanhol aqui.

* O sinal dos últimos dias - por Jonsson e outr fulano - Os autores demonstram que não é verdade que o mundo esteja a ficar tão mau que o fim do mundo tenha de estar à porta. Alguns capítulos estão disponíveis em português aqui. Novamente, só li estes bocados.

24.10.03

Na blogosfera... 

Recomendo a leitura dos posts "A culpa foi do Robespierre" no um blogue sobre Kleist, e "Religiões em Confronto" no Terras do Nunca.

23.10.03

Domingo 30 do Tempo Comum 

EVANGELHO - Mc 10,46-52

Naquele tempo,
quando Jesus ia a sair de Jericó
com os discípulos e uma grande multidão,
estava um cego, chamado Bartimeu, fiho de Timeu,
a pedir esmola à beira do caminho.
Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava,
começou a gritar:
"Jesus, Filho de David, tem piedade de mim".
Muitos repreendiam-no para que se calasse.
Mas ele gritava cada vez mais:
"Filho de David, tem piedade de mim".
Jesus parou e disse: "Chamai-o".
Chamaram então o cego e disseram-lhe:
"Coragem! Levanta-te, que ele está a chamar-te".
O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus.
Jesus perguntou-lhe:
"Que queres que eu te faça?"
O cego respondeu-Lhe:
"Mestre, que eu veja".
Jesus disse-lhe:
"Vai: a tua fé te salvou".
Logo ele recuperou a vista
e seguiu Jesus pelo caminho.


Gostaria de comentar dois aspectos apenas desta leitura. Como de costume, convido a visitar o site "Leituras dos Domingos" aqui à direita para um comentário mais alargado.

O primeiro diz respeito à conduta de Jesus, que me parece que chocaria algumas pessoas em intencionadas. Como pode ele ignorar assim o cego? E, uma vez em frente a ele, ainda lhe pergunta "Que queres que eu te faça?", como se não fosse óbvio.
Ora, eu julgo que este comportamento serve de exemplo à tenacidade que Jesus quer, pedagogicamente, fazer nascer em cada um de nós. Ele recusa-se mesmo a tratar o cego como "ceguinho" ou "coitadinho", exigindo-lhe firmeza no seu pedido. Noutro ponto, Jesus fala do assalto "com violência" ao Reino (Mt 11, 11), sinal que não se deve ser palerma ou falsamente humilde nas relações com Deus, ou na oração, mas firme, como se de uma luta se tratasse. Lembro-me da luta, física, de Jacob com Deus (Gn 32), em que Jacob sai vitorioso e "obriga" Deus a abençoá-lo (e lembro-me que este episódio chocou algumas pessoas do Grupo Novo, quando dele falamos). E, já agora, lembro que Jacob se tornou o Patriarca Israel, pai dos israelitas.

O segundo diz respeito à multidão. Notem como o seu comportamento é volúvel: primeiro enxotam o cego, depois encorajam-no a vir. Se forem ao Evangelho de S Marcos, esta leitura precede a entrada de Jesus em Jerusalém, onde ele é aclamado pela multidão. Pouco tempo depois, a mesma multidão de Jerusalém gritava a altos brados "Crucifica-o!". A multidão é apresentada como uma massa bruta, heterogénea e manipulável - ao contrário do cego, que é personalizado ao ponto de ter um nome próprio, Bartimeu. Aliás, em inglês, a palavra "multitude" tem exactamente esses dois significados, "multidão" e "multiplicidade". A multidão é incapaz de se concentrar na "única coisa necessária". Eu comparo isto com a multiplicidade de chamamentos que temos hoje: escola, trabalho, família, amigos, coisas a ler, filmes a ver, mensagens escritas, e-mail, messenger... Essa multidão de apelos também pode não ter direcção e obrigar-nos a cada dia sua coisa, acabando por nos fragmentar. Quando uma só coisa é necessária: o encontro pessoal, e não do meio da multidão, com Cristo, que obriga, como com Marta e Maria, a ficar tranquila e atentamente sentado a ouvi-lo.

22.10.03

Manifesto sobre o laicismo 

O Observatoire Chrétien de la Laïcité publicou a 11 de Setembro um manifesto, expondo os seus pontos de vista sobre a laicidade. O Observatório é composto de associações cristãs de base, entre as quais: Chrétiens pour une Eglise Dégagée de l’Ecole Confessionnelle, Partenia, Droits et Liberté dans les Eglises ou a famosa Nous Sommes Aussi l’Eglise, esta última parte de uma rede europeia, que em Portugal também tem uma filial, o movimento Nós Somos Igreja. Cito o primeiro parágrafo:

L’actualité rend urgent de redonner tout son sens au projet laïque. Relevons, en particulier: la montée des violences liées à la confusion du politique et du religieux, la prétention des nostalgiques de la chrétienté d’imposer des « valeurs chrétiennes » à l’Europe en construction, la tentation de remplacer une société pluraliste de citoyens par une mosaïque de communautés isolées, avec leurs services sociaux, leurs écoles, leurs pratiques séparées, au nom d’un prétendu droit à la différence qui conduit à une forme d’apartheid volontaire.

Deixo também aqui o link para o texto do manifesto.

21.10.03


Uma foto intrigante saída no New York Times, que eu encontrei no blogue A Montanha Mágica. O rosto e os olhos, bem nítidos, do Papa, e os cardeais, difusos, de costas: como guardas hostis ou como soldados de um exército?

O Islão em França (2) 

Há dias houve na televisão um debate exactamente sobre o Islão, onde participaram as duas raparigas, alunas de liceu, de que falei num post anterior, Alma e Lila. No caso delas, a opção pelo Islão e pelo véu foi exactamente isso: uma opção. Nascidas de um pai judeu, ainda que não praticante, a única pessoa na família que praticava o islamismo era uma avó. Elas começaram a interessar-se pela religião, começaram a frequentar mesquitas, e, para não praticarem só por praticar, estudaram a religião e interessaram-se verdadeiramente por saber o significado das coisas. Havendo, mesmo dentro do Islão, pessoas que defendem o véu, e outras que acham que não é importante, elas optaram por o usar. Os pais, não praticantes, nunca influenciaram estes desenvolvimentos, viram-nos apenas acontecer.

Alma e Lila nunca fizeram proselitismo na escola (o que seria proibido perante a lei). Foram expulsas por usarem o véu (considerado ostentatório), de uma forma consciente e livre, que resultou de uma opção informada.

E foi a França que nos deu a liberdade, igualdade, fraternidade.

Beata Madre Teresa 

A Madre Teresa de Calcutá foi beatificada a semana passada, depois de ter recebido o Nobel da Paz em 1979. Há um bom site sobre a sua vida aqui, feito por um professor belga que fez trabalho missionário com ela. Há também gente que não concorda com o protagonismo dado ao trabalho - veja-se por exemplo este site.

18.10.03

O Islão em França 

O primeiro-ministro francês, Jean Pierre Raffarin, visitou hoje uma mesquita em Paris, e é a primeira vez que um primeiro-ministro de França o faz oficialmente. Lá, falou contra o sentimento islamófobo. Tudo isto parece prometedor.
No entanto, há já bastante tempo que Raffarin afirma que é inadmissível que as raparigas usem na escola o véu (em francês, foulard), que é tradicional (ou imposto) no Islão, por ser um sinal religioso ostentatório, e ir, segundo ele, contra a laicidade do ensino. Esta tomada de posição já levou a um episódio de expulsão de duas irmãs, Alma et Lila, que andavam de véu, do liceu de Aubervilliers. A posição é tão firme que ele chegou a dizer que ou os partidos se põem de acordo (e de acordo com ele, bem entendido) sobre o assunto, ou é preciso passar uma lei a esse respeito (leia-se esta notícia).

A meu ver, um estado laico é aquele que respeita as opções religiosas dos seus cidadãos, e isso não se coaduna com este tipo de atitudes.

17.10.03

A mais bela Oração da Noite 

...é a oração litúrgica de Completas, da Liturgia das Horas ou Ofício Divino. Compõe-se sobretudo de passagens da Bíblia para rezar.
Podes encontrá-la aqui, em formato PDF, num caderninho de 24 páginas em formato A5.

29º Domingo do Tempo Comum (ano B) 

Sobre o Evangelho deste Domingo (cujas leituras se acham tanto aqui como aqui) já disse muita coisa no meu comentário ao Evangelho do Domingo 25 (podes ler esse comentário aqui, tens é de o procurar que está para o meio da página). Por isso vou dizer alguma coisa também sobre as leituras do Antigo e do Novo Testamento, que hoje se relacionam muito bem com o Evangelho: é que no Evangelho Jesus avisa que não veio para ser servido, mas para servir, e as outras leituras também falam do mesmo tema.

Como seria bom que todos fôssemos como Jesus! Mas não. Mesmo na Igreja vemos muita gente que parece mais preocupada com as suas prerrogativas, a sua influência, o seu mando. Na vida de todos os dias vemo-lo muito mais: no emprego, nas relações de vizinhança... Recorda-me a propósito do serviço aos outros aquela lapidar sentença do presbítero João: Quem não ama o irmão, a quem vê, como pode amar Deus, a quem não vê? (1 João 4, 20)

Também no nosso modo de evangelizar podemos errar desse modo. Muito querem trazer os outros para Jesus. Mas o que é preciso é antes levar Jesus aos outros. Não devemos pensar que todos têm de pensar de nós e adorar como nós, ou que a Igreja que temos é perfeita. O irmão Roger de Taizé conta que o papa João XXIII lhe disse: a Igreja é feita de círculos cada vez mais amplos... Com isto o papa louvava o seu modo de viver em Jesus, que chegava a muita gente que doutro modo nunca o conheceria. Ora, não devemos pensar que Deus só se acha no nosso círculo!

Mais um cuidado a ter ao meditarmos nesta palavra de Jesus: não se trata de nos humilharmos como se nós não valêssemos nada. O mandamento diz: amarás o teu próximo como a ti mesmo. (Levítico 19, 18; Mateus 22, 39; Marcos 12, 31; Lucas 10, 27; Romanos 13, 9; Gálatas 5, 14; Tiago 2, 8) E se nos não amamos a nós próprios, também não poderemos amar o próximo!

Cada um de nós tem valor, sim, e Cristo morreu por cada um de nós. É isso que nos diz a primeira leitura, ao predizer: «justificará a muitos e tomará sobre si as suas iniquidades». Sim, ele amou-nos até à morte, e morte de cruz. Não tenhamos medo, portanto, de Jesus! A segunda leitura mostra-nos que ele bem sabe como somos nós. É que o próprio Jesus foi também homem. É verdade de fé que por vezes esquecemos: pensamos tanto na divindade de Jesus que é como se ele não tivesse sido um homem. Mas Jesus passou por tudo o que nós passamos, a única diferença foi não ter pecado. O que não quer dizer que não tenho sofrido tentações, tal como nós. «Ele sabe como somos formados.» (Salmo 103, 14) Como é bela a conclusão da segunda leitura: «Vamos, portanto, cheios de confiança ao trono da graça, a fim de alcançarmos misericórdia e obtermos a graça de um auxílio oportuno.»

15.10.03

Os meus heróis: Santa Teresa de Ávila 



Celebra-se hoje, 15 de Outubro, a memória de Santa Teresa de Ávila, Carmelita, 1515-1582, mística célebre e proclamada Doutora de Igreja pelo papa Paulo VI em 1970. Sendo uma mística do tempo da contra-reforma, foi responsável pela renovação da espiritualidade católica nessa altura, juntamente com João da Cruz, seu conselheiro espiritual. Sendo pessoa para ter visões e êxtases, nunca se refugiou num misticismo vago e alienante, sendo também uma mulher forte, com os pés assentes na terra, tendo fundado ao todo 17 conventos, e uma variante das Carmelitas, as Carmelitas Descalças, com hábitos de tal modo renovados que as religiosas eram mal por vezes acolhidas quando chegavam a um sítio.

A sua doutrina e acção vieram a trazer-lhe problemas com a inquisição, que, na altura da contra-reforma, tinha as garras mais crispadas que nunca. Conseguiu livrar-se desse problema afirmando-se "ignorante" depois de cada passagem mais polémica da sua auto-biografia. Também a sua ânsia de reforma foi vista como tendo laivos "Iluministas", e os superiores da sua ordem tentaram impedir que ela fundasse novos conventos, sem êxito: aí foi o rei Filipe II que a apoiou.
Escreveu vários livros, como por exemplo "O Livro da Vida", uma autobiografia, "Moradas ou Castelo Interior", sobre a vida espiritual, ou "Fundações", sobre os conventos que fundou.
Na bula que a canonizou, quarenta anos depois da sua morte, o Papa Gregório XV louva a sua obediência dizendo "Ela habitualmente dizia que se podia enganar ao discernir as suas visões, mas não quando obedecia aos seus superiores". Olhando para a sua vida, isto pode bem ser visto como revisionismo. Ainda que ela o dissesse, as suas acções e os frutos destas acções dizem outra coisa bem diferente: se é verdade que ela sempre obedeceu aos seus mestres espirituais, sempre confiou mais na sua vocação que na hostilidade vinda da hierarquia.

Mais informação em Catholic Online, neste artigo, e no artigo da Wikipedia. Veja-se também o directório Google.

13.10.03

O arcebispo de Cantuária e o Papa (versão revista, corrigida e aumentada) 

O arcebispo de Cantuária foi recentemente a Roma visitar o Papa. Isto reveste-se de particular importância porque a visita teve lugar pouco depois de Rowan Williams ser eleito para arcebispo de Cantuária. É verdade que ele pode ter querido despachar-se porque a saúde do Papa é frágil e ele ainda poderia chegar tarde demais, mas também é um sinal de um desejo de maior comunhão entre as duas sés.

Os discursos que foram trocados podem ser lidos aqui. São todos breves e elucidativos. Aliás aproveito para recomendar as homilias do arcebispo, que primam todas pela profundidade da doutrina e pela clareza da exposição.

Pairou sobre esta visita o fantasma do reconhecimento por parte dos anglicanos da licissitude da homossexualidade. O Papa avisou o arcebispo para não se meterem nisso, e o arcebispo até quase que pediu desculpa... mas como o poder dele dentro da Comunhão Anglicana é muito limitado ele pouco pode fazer. É que esta questão dilacera presentemente a CA. Muitos opõe-se-lhe, afirmando que é contrária à Escritura; mas algumas Igrejas mais embezerradas pela onda do politicamente correcto defendem uma mudança de posição. A Igreja Episcopal Americana até elegeu já para bispo um homossexual que vive com outro homem depois de abandonar a própria esposa! Os dilemas que se vivem no seio da CA podem ser avaliados pelos artigos disponibilizados pela própria aqui e noutros pontos da sua página.

(Soube que houve leitores deste blogue que ficaram ofendidos com linguagem que empreguei na primeira versão. Apresento portanto as minhas desculpas, porque achei a queixa procedente. Julgo que agora ninguém terá razões para se melindrar.)

10.10.03

Evangelho do 28° domingo (tempo comum, ano B) 

Marcos 10,17-30

Naquele tempo,
ia Jesus pôr-Se a caminho,
quando um homem se aproximou correndo,
ajoelhou diante d'Ele e Lhe perguntou:
"Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?"
Jesus respondeu:
"Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.
Tu sabes os mandamentos:
'Não mates; não cometas adultério;
não roubes; não levantes falso testemunho;
não cometas fraudes; honra pai e mãe'".
O homem disse a Jesus:
"Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude".
Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu:
"Falta-te uma coisa: vai vender o que tens,
dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu.
Depois, vem e segue-Me".
Ouvindo estas palavras, anuviou-se-lhe o semblante
e retirou-se pesaroso,
porque era muito rico. [...]


O evangelho deste domingo é bastante longo, vou comentá-lo apenas parcialmente, e proponho, como é costume, a visita ao site "Leituras dos domingos" aqui à direita, para o texto completo e uma análise mais profunda.
Ora este texto vem frisar, mais uma vez, que os mandamentos são importantes, sim, mas seguir Cristo envolve uma conversão, que por vezes é mesmo escandalosa - para o jovem rico, as riquezas eram como um símbolo da aprovação de Deus à vida que ele levava, uma recompensa. O que Jesus pede neste caso é uma pobreza que leve à partilha, à fraternidade, com vista a essa "vida eterna" que não é só depois da morte, mas que é uma vida cheia e verdadeira desde já. Para cada pessoa Cristo tem o seu convite. E é esse convite que é preciso ouvir, para além dos ritos, dos preceitos, da missa ao domingo. É um convite que pode ir contra as nossas ideias feitas de religião ou de Igreja, como o foi para o jovem rico. Mas é sempre um convite à fraternidade, à verdade, ao desenvolvimento dos nossos talentos, à recusa do orgulho e do egoísmo. E é diferente para cada um de nós. É dessa palavra que fala a segunda leitura, com a qual vos deixo.

A palavra de Deus é viva e eficaz,
mais cortante que uma espada de dois gumes:
ela penetra até ao ponto de divisão da alma e do espírito,
das articulações e medulas,
e é capaz de discernir os pensamentos e intenções do coração.

Sobre o Papa 

Aceca do Papa, em primeiro lugar, penso que os não católicos, ou os catolicos não praticantes, podem e devem dar a sua opinião, que deve ser ponderada como qualquer outra, tendo em conta a maneira como é justificada. Eu, sendo católico, sinto a angústia de ver que gente a minha idade que me é próxima vê no Papa quase só um símbolo de unidade, uma figura querida, e que segue o que ele diz sem querer pensar muito mais, ou investigar coisas mais profundas. Quando estive em Roma, por ocasião do Jubileu 2000, o entusiasmo era todo à volta da figura, e pouco das palavras.

E se o Papa se mostrou bastante viajado, fisicamente, em termos de doutrina parece-me que o seu maior contributo foi ter impedido avanços ultra-conservadores por parte de gente da Cúria. Em termos de doutrina, não viajou muito. Publicou, sim, muita coisa em termos de doutrina social, especialmente anti-comunista, nada de muito radical. Em termos de moral, não andou nem para trás nem para a frente. Em termos de vida eclesial, manteve tudo como estava, centralizando mais: mulheres fora da hierarquia, sínodos meio desconsiderados, bispos que são agentes externos da doutrina do Vaticano. Em termos de ecumenismo, houve passos visíveis, mas faltaram os invisíveis: os necessários ajustes doutrinais e disciplinares.

Enfim, não quero bater no velhinho, mas podia ter sido melhor. Especialmente depois de ter visto o que fez João XXIII.

9.10.03

Notícia (actualizado) 

OK, uma coisa é dizer que o preservativo é pecado. Outra é dizer isto, que é, cientificamente, mentira. Entenda-se: não é mentira dizer que o preservativo não é 100% seguro, é sim dizer que não por causa disso não pode se usado como instrumento na luta contra a sida, se uma pessoa recusa a abstinência. Mesmo dentro da moral católica mais estrita, o uso do preservativo nesse caso é o mal menor.

8.10.03

O Papa e o espectáculo 

Um texto (bastante ácido, mas que dá que pensar) sobre os 25 anos do Papa, publicado ontem (7/10) no blogue blogo existo.

Ainda sobre o Matrix 

Há um momento crucial na história do Matrix, que é quando o Morpheus dá ao Neo a escolher entre o comprimido azul e o comprimido vermelho. O comprimido azul significa que ele continuará a dormir, sabendo que está a viver uma vida falsa; o comprimido vermelho fá-lo acordar para uma realidade dura e difícil de aceitar, mas que é a verdadeira realidade.

Ora, não sei se já foram ao site do Matrix, há lá uma secção de filosofia, e é surpreendente ler alguns textos que defendem que o que se deve fazer é tomar o comprimido azul e continuar a dormir. Afinal, para quê acordar de um lindo sonho para uma realidade horrível, onde o poder para a mudar é escasso?

E isto é uma coisa que nos diz respeito. Porque podemos saber que a "realidade lá fora" é dura, e às vezes preferir tomar o comprimido azul, mesmo sabendo que ele nos dá uma vida falsa, mas mais apetecível. Por exemplo, vivendo dentro dum centro comercial colorido, sem olhar para as vidas das pessoas do subúrbio onde esse centro está instalado. Ou vendo os anúncios e não lendo as notícias. Ou, na vida religiosa, indo à missa pela aparência e não pela fraternidade que deve gerar. É preferir a alienação à verdade - mesmo sabendo que é alienação. Assim se vende um pouco a alma ao diabo.

Pode parecer-vos que isto não tem lugar num blog católico, mas Cristo sempre lutou por essa vida na verdade, só por ser a verdade, mesmo que isso lhe viesse a custar a sua vida, como de facto aconteceu. Lutou contra a religiosidade falsa dos fariseus, contra as aplicações literais de preceitos duros da lei. Disse ao jovem rico que a verdade era, mais do que cumprir os preceitos da lei, ser pobre de coração. Rejeitou até a ideia que Pedro lhe queria propôr, que a cruz se calhar não era precisa. Cristo sempre optou pelo comprimido vermelho, o da verdade. E é sempre isso que ele nos propõe.

6.10.03

Sobre a imigração 

O Pe. Vaz Pinto, alto-comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, diz hoje o seguinte numa entrevista ao Público:

Dados recentes da União Europeia, relativos a estudos feitos em 17 países, chegaram à conclusão muito clara - e eu fiz chegá-los a quem de direito - que não há relação directa entre desemprego e imigração. [...]
Os imigrantes vêm ocupar os lugares que os portugueses ou não sabem ou não querem ocupar. Por isso, relacionar imigração com desemprego ou com criminalidade ou com economia paralela, que é outra das acusações que se faz, não tem hoje cabimento científico. Mais ainda: evidentemente, se nós formos aos centros de emprego, verificamos que há 20 ou 30 mil imigrantes desempregados; mas isso acontece num contexto de cerca de 500 mil desempregados. Há algum desemprego periférico, mas que não chega a quatro por cento. Isto é um lado das coisas. O outro lado tem que ver com o contributo dos imigrantes para Portugal. Seja demográfico: a Europa e Portugal não se vão conseguir aguentar nem poder pagar as suas pensões sem o contributo dos imigrantes. Seja financeiro: em 2001, o contributo dos imigrantes, aquilo que pagaram na segurança social, contraposto a tudo o que o Estado gastou com eles, dá um saldo positivo para o Estado português de 65 milhões de contos.


Mas também...

Agora, não posso também esquecer que a componente económica é indispensável. E estar a dizer: "venham", e depois não haver condições de habitação, ensino, saúde e de trabalho, isso é uma maldade maior.

5.10.03

Messias contemporâneos 

Depois de o Duarte ter comparado o messianismo de Cristo ao de algumas personagens de BD, não pude deixar de vos chamara a atenção para o facto de, nos meses que restam neste ano, estar prevista a saída de dois filmes dois com essa temática. São as ansiadas conclusões de Matrix e O Senhor dos Anéis.

Em ambos, o messias (Neo, no primeiro caso, Frodo no segundo) traz verdadeiramente uma mudança radical, uma nova era (ao contrário da maioria das personagens de BD, que apenas resolve problemas pontuais). Em ambos o messias vem de onde não se espera, é um sujeito normal que as circunstâncias e um dom natural projectam para a ribalta. Em ambos, há um episódio traumático antes de ele assumir o seu papel. E ambos têm um coração puro.

Se querem mais pontos em comum, vejam o livro The Hero With a Thousand Faces, de Joseph Campbell, um famoso mitólogo dos Estados Unidos. Aí, ele recolhe os pontos comuns de vários mitos de heróis, religiosos, ou não (o site que eu deixei tem um capítulo do livro).

E com base nesse livro - e no talento de George Lucas - se fez uma extraordinária saga heróica: o Star Wars. Sim, Luke Skywalker é o herói mitológico, by the book. O mito eterno actualizado.

3.10.03

Grupo católico no IST 

Esta é uma notícia de âmbito talvez excessivamente local, mas cá fica, porque o Reino de Deus também não é feito de coisas grandiosas à vista, mas sim de coisas pequenas e humildes, e porque bastam dois ou três para Jesus estar presente:
Houve ontem, 2 de Outubro, a primeira reunião de um grupo católico no Instituto Superior Técnico que está a arrancar. Desde há muitos e muitos anos que não há cá nada do género. O grupo conta com o apoio do Padre Diogo Barata, de Schönstatt, que ficou muito contente por poder ajudar, porque também estudou cá antes de entrar no seminário. Mas o grupo não está ligado a nenhum movimento especial: havia gente das Equipas de Nossa Senhora, do Opus Dei, do Verbum Dei, dos jesuítas, de Schönstatt, e gente ligada a paróquias: todos fomos apanhados pelas redes de pesca.
Éramos 14 estudantes: mais que todos os cristãos de Éfeso quando Paulo lá chegou (Actos 19, 1-7)!

A velhice do Papa 

Escreveu Pacheco Pereira o seguinte no seu blogue Abrupto.

O Papa está a fazer uma coisa muito difícil, em que o “corpo é que paga”. Está a morrer diante de nós, depois de envelhecer diante de nós, restituindo a uma parte da vida, que escondemos em lares sórdidos para nosso conforto, uma dignidade essencial. É uma opção que muitos não compreenderam, porque têm o culto da juventude e da eficácia, da energia e da vitalidade, e não perceberam a última lucidez deste homem – a de nos devolver a integridade da vida toda.

1.10.03

27º Domingo do Tempo Comum - Ano B 

Porque as palavras do Senhor no Evangelho são muito claras, vou pensar um pouco na segunda leitura (podes ler as leituras deste domingo aqui ou aqui), que é geralmente uma leitura a que ninguém liga nenhuma, porque a primeira ao menos ainda é escolhida para condizer com o Evangelho, enquanto que a segunda corresponde à leitura mais ou menos contínua das epístolas.

A leitura fala do pouco tempo durante o qual Jesus foi inferior ao anjos: é a altura durante a qual se fez Homem. (Lá diz o salmo 8: «Que é o Homem, para que te lembres dele, e o filho do Homem, para dele te ocupares? Fizeste dele quase um ser divino.» Noutras traduções: «Fizeste-o um pouco inferior aos anjos.») Agora não, está coroado de honra e glória, e isto, lemos, «por causa da morte que sofreu». O texto até diz que «era necessário» que ele «experimentasse a morte em proveito de todos». Mas porquê?

Alguns pensaram que isso era como um troca: Deus ofereceu o seu Filho ao demónio em troca da humanidade, que pertencia ao demónio. A prova disso é que todos morriam e iam parar à mansão dos mortos, onde ninguém louva a Deus. Mas o demónio lixou-se com a história, porque Jesus ressuscitou, em vez de ficar na mansão dos mortos, e ainda aproveitou para libertar do poder da morte e da mansão dos mortos os que já tinham morrido, bem como aqueles que haveriam de morrer, oferecendo a todos a esperança da ressurreição. Outros (nomeadamente Sto. Anselmo, que foi o primeiro a lembrar-se desta) pensaram que o problema é que Deus queria vingar-se em alguém da desfeita que Adão lhe tinha pregado no Éden. Só que Adão era perfeito e os seres humanos seus descendentes não; e portanto ninguém era compensação adequada para Deus («O homem não pode pagar o seu resgate; não pode pagar a Deus a sua redenção. É muito caro o resgate da sua vida e ele nunca pagará o suficiente para prolongar indefinidamente a sua vida.» - Salmo 49(48), 7-9). Assim Jesus veio como homem perfeito e Deus vingou-se nele, castigando-o como Adão merecia! E assim Deus já descarregou as energias e torna a olhar com bondade para os Homens.

Hoje em dia estas explicações provavelmente não nos parecerão suficientes (e ainda bem). Porque é que então havemos de pensar que Jesus tinha de morrer?

Pessoalmente acho que isto é um mistério muito grande, mas continuo seguro daquilo que a Bíblia afirma: que Jesus experimentou a morte «em proveito de todos», e que isso foi «pela graça de Deus». É que a encarnação é a maior prova de amor de Deus por nós. Não devemos pensar que a paixão de Jesus foi só o que lhe sucedeu nos seus últimos dias de vida. Não: toda a vida de Jesus foi efectivamente oferecida em sacrifício ao Pai, isto é, Jesus viveu sempre para o Pai, de modo a agradar-lhe perfeitamente. Coisa que nenhum de nós consegue! Li isto há meses num livro: que na realidade é toda a comunhão do Filho com o Universo que criou, com as criaturas que por seu intermédio vieram à existência, é todo esse partilhar de uma realidade que não é sua, e que ele não desdenhou («não se valeu da sua igualdade com Deus» - Filipenses 2, 6, ou, segundo outras traduções, «não se agarrou à sua divindade»), é tudo isso que é o sacrifício agradável aos olhos de Deus. Não, Deus não é um Deus irado que precise de alguém em quem se vingar. Leiamos os profetas: de uma ponta à outra, estão cheios de textos de esperança, de confiança de que Deus não é um Deus vingativo que paga olho por olho e dente por dente. «O meu coração não me deixa fazê-lo! O meu amor por ti é demasiado forte. Não te vou castigar na minha ira.» (Oseias 11, 8-9) «Se tiveres em conta as nossas faltas, Senhor, quem poderá salvar-se? Mas ti está o perdão.» (Salmo 130(129), 3-4)

Quando nos confessamos, o padre também não ora a Deus pedindo que ele se acalme e não fira de morte o penitente que até o mereceria. Pelo contrário: ao ver que este está arrependido, declara: Deus, Pai de misericórdia, que pela morte e ressurreição do seu Filho reconciliou o mundo consigo e infundiu o Espírito Santo para remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz. Deus reconciliou o mundo consigo! Não foi Deus que se reconciliou com o mundo, com quem estava lixado. Como diz um cântico muito belo: «tu dizes que te afastaste dez mil passos, mas sabe que basta apenas um passo para voltares, porque aquele que te ouves quando rezas é aquele que está mesmo ao teu lado e nunca te há-de deixar».

A morte de Jesus era necessária porque ele veio provar a condição humana. Era verdadeiramente homem! Não era um ser sobre-humano a fingir que era igual aos outros (como certos Messias das mitologias populares do século XX: mitologias como histórias de cinema ou de BD onde o Messias, que é um tema recorrente de tantas religiões, aparece sob a forma de super-heróis com poderes especiais). Não: Jesus não é um super-homem nesse sentido. Assim como ele tinha de comer, andar, cansar-se, dormir, e outras coisas do género, também haveria de ter de morrer. Só que a morte de Jesus, num mundo que «não o reconheceu» (João 1, 10), entre aqueles que «não o receberam» (João 1, 11), tinha de acabar antecipada. Aí Jesus também não fugiu. Tinha-se humilhado até à condição de servo: humilhou-se mais, até à morte, e morte de cruz.

Bem vemos que Jesus orou ao Pai para afastar dele o cálice! Mas ele queria a vontade do Pai e não a sua própria vontade humana. Por isso foi fiel até ao fim: fiel à humanidade que tinha assumido, fiel à Humanidade cuja sorte partilhava e a quem estava prestes a mostrar que Deus tem poder sobre a morte. Tinha sido por causa da Humanidade que ele tinha vindo ao mundo. Por isso é que foi conveniente que Jesus assumisse a condição humana: «Ele não vinha socorrer os anjos, mas a descendência de Abraão. Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus» (Hebreus 2, 17). Por isso se tornou o Filho de Deus um judeu: para ajudar a descendância de Abraão e, neles, abençoar todas as nações da terra, como tinha prometido ao próprio Abraão. E para, ressuscitando, nos mostrar o caminho: é que nós estávamos, «pelo pavor da morte, sujeitos à escravidão toda a vida» (Hebreus 2, 15). Mas agora estamos livres dessa escravidão da morte, porque o próprio Jesus nos afiançou que na casa do Pai há muitas moradas, e que ele apenas ia diante de nós a preparar-nos lugar (João 14, 2).

Ponhamos pois os nossos olhos em Jesus, o nosso sumo-sacerdote (Hebreus 3, 1), que não desdenha chamar-nos irmãos, porque todos somos filhos do mesmo Pai celeste.

La Finestra di Fronte 

Vi há algum tempo, no cinema, o filme "La Finestra di Fronte", do qual aliás gostei muito. Tentando não estragar o filme a quem não viu, é a história de uma rapariga que tem a sua vida socialmente normal (casamento, casa, emprego, dois filhos), mas que descobre que lhe falta algo que é essencial, uma vocação que ela não se apercebia que tinha - e que só descobre depois de um encontro fortuito. Depois da descoberta, não mais a pôde ignorar, como o homem que descobriu a pérola no campo, e fez tudo para o comprar.

Fazendo a relação com a vida em Igreja, e especialmente com os católicos, eu penso que também se corre o risco de ter uma vida social religiosa normal - ir à missa, frequentar os sacramentos, participar na vida da paróquia, etc - e no entanto passar ao lado do essencial, que é a relação com Deus Pai que vem da nossa condição de filhos, dada por Jesus de Nazaré.

Há uns tempos, eu andei a ler um autor medieval, Johann Eckhart, dito Meister Eckhart, um místico dominicano que dizia a este propósito que são os sacramentos o que mais impede uma pessoa cristã de encontrar Deus - se estes sacramentos, é claro, forem vividos como o cumprimento de um dever religioso. Nesse caso, podem de facto fazer a pessoa pensar que aquilo basta, nunca chegando a compreender ao certo a profundidade da relação filial com Deus, experimentando-a, eventualmente, mas passando-lhe ao lado.

É aí, nessa solidão íntima necessária, que envolve sentimento e pensamento, que se estabelece e se fortalece o âmago da vida cristã. É isso que é mais importante que tudo. É essa a vocação profunda e essencial de todo o cristão.

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