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29.9.03

A menina dança? (2) 

Opiniões sobre o hipotético documento com as proibições: Mário Pinto, Frei Bento Domingues e Cardeal Patriarca.

28.9.03

Pai nosso, que estás nos céus 

Tirei do blogue Barnabé o seguinte texto, citando o livro Sobre "formas de tratamento" na língua portuguesa de Luís F. Lindley Cintra (Livros Horizonte, 1972).

E Lindley Cintra diz esta coisa espantosa, que eu nunca tinha percebido, mas que já tinha sentido quando de vez em quando assisto a missas: a língua portuguesa é a única que manteve, nalgumas orações religiosas fundamentais (Pai Nosso e Ave Maria, por exemplo), não meramente uma forma de tratamento que cria distância em relação a deus, mas uma forma de tratamento que começou a entrar em desuso e a ser considerada vulgar no século XVIII: o vós no singular. Como em 1721 escreveu o P.e Rafael Bluteau, que vinha de família francesa e tinha nascido em Inglaterra, "he cousa notável que a Jesu Christo falem os Christãos por vós: vós sois meu Deos, vós sois meu Redemptor e que hum vós de hum homem a outro homem pareça injúria...". Todas as outras línguas latinas, mais cedo ou mais tarde, introduziram o tu naquelas orações, denotando assim uma intimidade com o destinatário, no caso, deus. Na nossa língua a forma de tratar deus criou uma distância enorme com a língua viva. Segundo Cintra, houve alguma hesitação, nas traduções do Novo Testamento dos anos 50 do século XX, sobre a norma a usar. Mas o "vós" singular prevaleceu em detrimento do muito mais bonito "tu": "Ave Maria cheia de graça, o Senhor é contigo..." ou "Pai Nosso que estás nos Céus, santificado seja o teu nome...".

Quanto a mim, foi por boa influência da Susi que há já alguns anos, comecei a rezar em privado o Pai Nosso e a Ave Maria usando o "tu", vindo depois a fazer o mesmo com o "Agora Senhor".

26.9.03

Serviço público 

Como já terão notado, o Duarte e eu estamo-nos a revezar para vos trazer, todos os fins-de-semana, um comentário às leituras. Esta semana tocou-me a mim, para a próxima é ele (que já não manda um post há muito tempo).

Evangelho do 26o. domingo 

Marcos 9,38-43.45-47-48

Naquele tempo,
João disse a Jesus:
"Mestre,
nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco".
Jesus respondeu:
"Não o proibais;
porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
e depois dizer mal de Mim.
Quem não é contra nós é por nós.
Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
que crêem em Mim,
melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
uma dessas mós movidas pró um jumento
e o lançassem ao mar.
Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
porque é melhor entrar mutilado na vida
do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
para esse fogo que não se apaga.
E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
porque é melhor entrar coxo na vida
do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo,
deita-o fora;
porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
onde o verme não morre e o fogo não se apaga".


Para não me alargar muito vou comentar só a primeira e a última partes deste texto.
Na primeira parte, os discípulos vêm fazer queixa de alguém que trabalha em nome de Jesus, mas não está com eles. A atitude dos discípulos é de se manterem isolados do resto do mundo, como quem diz "Nós é que estamos contigo, nós é que estivémos sempre contigo, que autoridade tem esse outro tipo para fazer coisas em teu nome?" É, ainda a visão do Reino como um estado, tal como o Duarte referia no comentário da semana passada.
A resposta de Jesus é claríssima: "Quem não é contra nós é por nós"! Isto do Reino não é uma coisa fechada a vocês, meus senhores, o Espírito sopra onde quer, e é a ele que é preciso respeitar e ter atenção. E se ele sopra nos "outros", nos que estão "de fora", é preciso ouvi-lo na mesma. Se querem fronteiras, desenganem-se.
Esta é uma ideia muito forte a favor, por exemplo, do ecumenismo. Afinal, há imensas denominações cristãs, e os católicos por vezes insistem nas fronteiras.
Por outro lado, dados os recentes acontecimentos, eu atrever-me-ia a perguntar: quem pode dizer que há coisas que não têm lugar nas missas, quando estas são praticadas por crentes, e algumas pelo próprio papa? Não sopra também aí o Espírito Santo?

Finalmente, queria salientar aquela última parte em que Jesus fala da Geena (informalmente, o inferno), e dos que vão para lá. Ora, eu sei que há gente que se choca com esta linguagem do "verme que não morre" e do "fogo que não se apaga", mas a verdade é que Jesus é muito claro: entrar ou não entrar no Reino não é questão de escolha de carne ou peixe: é questão de vida ou morte. Há coisas que nos podem ser caras, mas que nos impedem de entrar no Reino - no caso dos discípulos, nesta passagem, o orgulho de permanecerem fechados às manifestações do Espírito nos outros, ou o egoísmo de quererem um reino só para eles. E é por isso que Jesus pede que sejamos capazes de relativizar as coisas, mesmo algumas que nos sejam caras (simbolizadas pela mão, representando actos, e pelo olho, representando o fascínio por certas coisas), em nome da vida maior que ele nos promete, que é o Reino.

Quem queira fazer uma leitura orante deste evangelho, pode pensar no seguinte:
1. Até onde vai a sua ideia pessoal de Reino? Restringe-se a um grupo? A uma paróquia? A uma igreja?
2. Quais os seus impedimentos pessoais concretos à entrada nesse Reino?

Finalmente, para um comentário mais longo e mais informado, aconselho o link aqui à direita, "Leituras dos domingos", com enquadramento histórico e cultural e análise da mensagem.

24.9.03

Como apareceram os 4 evangelhos? 

Há um texto bastante informativo no blogue Cruzes Canhoto sobre a maneira como se chegou a ter estes 4 evangelhos que temos agora. Procurem o título "E o Mister Santo do ano é...", e o subtítulo "Evangelhos", no dia 24 deste mês. É um post muito comprido...

A menina dança? 

O Vaticano prepara-se para fazer sair um documento com 37 actos que serão proibidos nas missas, entre os quais bater palmas, dançar, ter acólitas (do sexo feminino), ou fazer concelebrações com padres não católicos - notícias sobre o documento no Público, e as reacções (negativas): no Público e na TSF.
Note-se que a primeira notícia refere que um dos órgãos responsáveis pelo documento é a Congregação para a Doutrina da Fé, presidida pelo muito conservador (e isto é um eufemismo) Cardeal Ratzinger. Assim se vê como pensa a Cúria. Como dizia o nosso Bispo D José Policarpo, esta gente demasiado conservadora não é muita na nossa Igreja (como se vê pelas reacções), mas faz muito barulho - é de onde estão colocados, naturalmente.
De facto, isto das palmas e das danças até dá vontade de rir. Quantas missas com o Papa tiveram palmas e danças?
Para onde vamos nós?

Mortal e venial 

Todos sabemos que os pecados se dividem em mortais e veniais. Ou seja, há um momento em que o tipo de pecado que se faz dá um salto qualitativo, deixa de haver uma progressão linear, do menos para o mais grave, e há um salto brusco, que separa o venial do mortal. Por exemplo, em questões de propriedade, roubar um caramelo estará do lado menos grave, enquanto roubar as economias de uma vida de um casal de velhotes estará do outro. E não é possível fazer uma gradação linear e contínua dum comportamento para o outro, a certa altura tem que haver um salto qualitativo de maldade.

Andando a ler os textos da Dissent Magazine, encontrei um sobre intervenções humanitárias que apresenta exactamente este argumento do salto brusco - de certo modo, é dizer que os pecados de um regime político se podem também dividir em veniais e mortais. O artigo chama-se The Argument about Humanitarian Intervention, é de Michael Walzer, e a parte que me chamou a atenção foi esta:

I want to insist on this point; I don’t mean to describe a continuum that begins with common nastiness and ends with genocide, but rather a radical break, a chasm, with nastiness on one side and genocide on the other. We should not allow ourselves to approach genocide by degrees. Still, on this side of the chasm, we can mark out a continuum of brutality and oppression, and somewhere along this continuum an international response (short of military force) is necessary. [...]
But when what is going on is the “ethnic cleansing” of a province or country or the systematic massacre of a religious or national community, it doesn’t seem possible to wait for a local response. Now we are on the other side of the chasm. The stakes are too high, the suffering already too great. [...] This is the occasion for intervention.

23.9.03

Cristianismo na Europa 

Tirei isto da revista Dissent, dum artigo do Pascal Bruckner. Mostra um pouco a quantidade de maus caminhos por onde andámos, enquanto Igreja - algo a considerar, quando há gente que quer referências ao cristianismo no preâmbulo da constituição europeia. O texto é optimista, em relação às culpas assumidas, embora eu ache que ainda há caminho para andar neste momento, desculpas a pedir e coisas a alterar. Mas por agora, fica só a boa consciência do que já se fez.

Christianity and Islam are both imperialist religions. Both are convinced that they possess the truth and have been prepared to save humanity despite itself, with the sword, the stake, and the Inquisition. But Christianity, worn down by four centuries of opposition from within Europe, has given ground and accepted the principle of secularism. The Catholic church accomplished its aggiornamento with Vatican II. And John Paul II completed this unprecedented process by addressing solemn apologies to the Jewish community, the Indians of Latin America, the Eastern Orthodox church, and Protestants, by recognizing the papacy's failure to accept major scientific discoveries since the fifteenth century, by condemning the Crusades, and by renouncing forced conversions. Rome, in keeping with its founding vocation, finally seems to have abandoned its temporal ambitions for purely spiritual aims.

Aqui fica o artigo completo: Europe: Remorse and Exhaustion

21.9.03

Catequese em França 

Hoje fui a uma missa numa igreja diferente da do costume, pois deixei-me dormir de manhã... e apanhei uma em que não houve homilia, ou antes, a homilia ignorou completamente o evangelho para falar apenas das necessidades da catequese (valeu-me o comentário do Duarte, bem haja).
Segundo disse o padre, em 1994 cerca de 44% das crianças que andavam na escola frequentavam a catequese, agora são cerca de 36%, e com tendência a descer um ponto percentual por ano. Assim, multiplicavam-se os pedidos quer de catequistas, quer de difundir a publicidade - "On va au caté", com duas chávenas de café ao lado, para fazer o trocadilho. Elogiou-se também a boa vontade e o empenho dos catequistas actuais e reforçou-se a ideia que a evangelização não é só para os profissionais.
Por acaso, até discordei. Eu diria que seria muito bom que os catequistas não vivessem só de empenho e de boa vontade, mas também de alguma formação doutrinal sólida. Isto acontece com qualquer professor. Senão, a catequese arrisca-se a ser (na melhor das hipóteses) um lugar de encontro alegre entre miúdos, em que se incutem alguns valores e alguns comportamentes, e se habituam as pessoas a vir à igreja. Ou seja: transmitem-se valores e comportamentos, não se transmite uma fé.
E há gente que, infelizmente, não sabe a diferença entre estas duas coisas.

19.9.03

Evangelho do 25º Domingo TC (B) 

O texto do Evangelho do 25º Domingo d TC ano B (podes lê-lo aqui) mostra-nos como os apóstolos que seguiam Jesus eram de facto um bocado broncos, e não sabiam bem porque o seguiam. Jesus não era um Messias propriamente igual ao que se esperava, porque o Reino de Deus de que ele falava, ao contrário do que então se supunha, não era uma teocracia terrestre. Os apóstolos claramente ainda não tinham chegado lá e, enquanto Jesus sofria a pensar no que se estava mesmo a ver que acabaria por lhe acontecer (e aconteceu: a rejeição por parte de muitos, em particular por parte da maioria dos líderes religiosos, e a sua execução), eles andavam era a discutir quem é que ficava à direita e à esquerda dele (hoje em dia diríamos: quem é que ficava com as Finanças ou com a Administração Interna; em suma, tratavam de distribuir os tachos). Ricas lições nos dá esta Escritura. Em primeiro lugar é um espelho da natureza humana. Preocupamo-nos muito com esta treta de cargos e importâncias relativas. É óbvio que os apóstolos não tinham grande hipótese de vir a governar um estado de Israel independente! Seriam semelhantes a um pequeno partido de hoje em dia. E hoje em dia vemos como nesses pequenos partidos há amiúde bulhas e zangas motivados por distribuição de tachos que é óbvio que nunca serão desse partido, mas sim dos grandes. Tais zangas e dissensões até acabam por ser maiores em tais grupelhos marginais que nos grandes partidos! Há muitos exemplos, e lembram-me vários, que também não vale a pena dar agora. Além disso, dá a sensação de que, se nos grandes partidos tais dissensões não surgem, pelo menos tão aberta e frequentemente, é porque há mesmo tachos para distribuir e o pessoal vê que tem de ser mais dissimulado para os apanhar (e não por haver mais virtude nos partidos grandes). Ou seja, fraqueza e baixeza humana parece haver sempre.

Tudo isto se verifica não só em partidos: verifica-se também em inúmeros movimentos de outra natureza, mesmo que não política. Na minha experiência pessoal, lembram-me dissensões semelhantes na Associação Juvenil de Ciência, que é uma associação para promover actividades científicas entre os jovens. E conheço histórias assim em reuniões de condóminos (com uns a querer mandar mais no condomínio do prédio que os outros), em empresas... Isto deve-nos fazer reflectir sobre o que é que está por trás disto tudo. Na empresa ou no trabalho, podia-se apelar a motivos de ordem financeira para explicar tais comportamentos. O pessoal quer ter mais dinheiro, ganhar mais, ser promovido, não ser despedido... No condomínio, podia-se apelar à explicação de que é para que os interesses de uma pessoa relativos a bens materiais sejam preservados da maneira que lhe parecer mais conveniente. Mas não é só isso. Há mais qualquer coisa. Não estou a dizer, claro, que em tais agrupamentos humanos esses factores não tenham importância. Têm, pois; mas o que digo é que não são únicos. E em agrupamentos doutro tipo (como é o caso da Associação Juvenil de Ciência) não pode sequer supor-se que a razão seja essa (ninguém ganha dinheiro com aquilo, é uma associação voluntária). O que está por detrás disto tudo é vontade de ter poder, vontade de mandar, vontade de submeter outros, vontade de ser importante, vontade de se ser superior. Também nas questões políticas é isso que muita vez conta. É a vontade de mandar, de impôr; é a sede de poder.

Na igreja também estamos tantas vezes a pensar assim! É muito fácil para os ministros ordenados tentar impôr a sua vontade (mesmo que toda a gente na paróquia ou na diocese seja contra) e sentirem-se superiores aos outros. Não estou com isto a dizer que por vezes não haja padres que tomam boas decisões contra opiniões pouco esclarecidas (vêm-me à memória aqueles casos recorrentes de festas pseudo-populares supostamente em honra dum santo qualquer, em que tantas vezes sucede quererem-se fazer coisas completamente acristãs e em que se pretende que a Igreja participe como apenas mais um elemento folclórico, como que para embelezar a fotografia). Refiro-me antes a casos em que certas pessoas tentam impôr ditaduras espirituais ou temporais, dominando sobre a fé dos outros. Isso não sucede só com os ministros ordenados: pode suceder com todos os cristãos. Há tantos casos em que certas pessoas tentam que as outras se limitem a conformar-se com as suas maneiras de fazer as coisas, de organizar os serviços, de arrumar a igreja, de planear actividades... E, pior ainda, há a imposição de opiniões espirituais: o desejo de que todos os outros pensem como nós, creiam como nós, adorem como nós, rezem como nós, sintam como nós. E isto em assuntos sobre os quais Jesus nada disse, sobre os quais nada na revelação de Deus se acha, em pormenores a que Deus com certeza não liga nem exige uniformidade; é como se houvéssemos de ser formigas num formigueiro, arregimentadas e acríticas, sem pensamentos, meramente obedientes a um chefe ou líder humano que se arroga prerrogativas sobre-humanas e exige dos outros o que só Deus pode exigir, e muitas vezes nem ele exige.

E porquê isso tudo? Porque estamos fechados em nós próprios, porque os outros para nós nesses momentos contam meramente como objectos para nosso uso pessoal; porque nos consideramos tão superiores que os outros não têm senão de se sujeitar aos nossos arrimos. No fundo, porque nos tornamos deuses a nossos olhos.

Jesus, ao encarar a sua paixão vindoura, que ele vê, horrorizado, a aproximar-se dele, está só. Os apóstolos estão com ele mas não comungam dos seus pensamentos: andam ocupados com ninharias, com quem é mais importante, com lugares de honra, com mordomias. E deixam o mestre só a contemplar o que o espera, e a ter de ter a força, sozinho, para ir de encontro ao que não pode evitar se quer ser fiel à sua mensagem.

Jesus termina dando-lhes uma lição. A criança que ele mostra como exemplo é exemplo pela sua inocência. Não é pela sua infantilidade: Jesus não quer que sejamos infantis no sentido de sermos dependentes de coisas que não alcançamos. A única dependência que nos importa é depender de Deus, de quem dependemos verdadeiramente; e esta não é uma dependência que rebaixa: o apóstolo João afirma (1 João 3, 2) que no futuro seremos como ele (Deus) é: seremos divinizados e exaltados. Jesus não aponta a criança como exemplo por ser inconstante ou birrenta: antes nos recomenda a não deitarmos a mão ao arado para depois andarmos a olhar para trás (Lucas 9, 62); e recomenda-nos que depois de termos feito tudo o que devíamos nos sintamos servos inúteis exactamente porque tudo isso era não mais do que o que devíamos (Luicas 17, 10). Nem devemos entender que apontar uma criança como exemplo seja apontar-nos o caminho de uma regressão. O autor da carta aos Hebreus exorta-nos (6, 1) a progredirmos para coisas mais perfeitas, deixando os fundamentos da fé; e Paulo censura os Coríntios (1 Coríntios 3, 2) porque, devendo eles estar aptos a progredir na fé, se acham como crianças a ter de mamar. Paulo também comparou a evolução espiritual ao abandonar das coisas de criança (1 Coríntios 13, 11). Nem devemos supor, como alguns fizeram, que é a sociedade que deseduca as crianças e gera a maldade nos homens (e mulheres) feitos. De facto, as crianças abandonadas, longe da sociedade, crescem para serem como bichos. É com efeito pela sociedade que se transmitem não só os vícios, mas também os méritos; não só a barbárie, mas também a civilização; não só os preconceitos, mas também os conhecimentos; não só os erros, mas também os valores; não só os males, mas também a educação; não só os egoísmos, mas também os altruísmos; não só a baixeza, mas também a educação; não só o pecado, mas também a graça. «Onde abundou o pecado, superabundou a graça.» (Romanos 5, 20)

Não: Jesus aponta a criança por ela ser inocente, por ser pura, por confiar, ser capaz de amar, e, sobretudo, e em oposição aos apóstolos, por não ter tais sedes de poder e de domínio e de auto-latria. Haverá casos patológicos no universo infantil (de crianças que não terão essas qualidades que os apóstolos também não evidenciavam e para as quais Jesus lhes queria chamar a atenção), mas quão amiúde não resultam de culpa dos pais que as não educam! É que a criança também tem capacidade de aprender, de não pensar que sabe sempre tudo; e nós devemos também aprender continuamente de Jesus e achegar-nos a ele, para sabermos estar no mundo como alguém que tem tudo e como alguém de quem nada é.

Muito haveria a dizer sobre as outras leituras, mas fica para daqui a três anos!

Padre acompanha grupo de homossexuais 

Nem de propósito. Depois do meu último post, encontrei uma notícia no Público sobre um padre italiano que trabalha com homossexuais, num grupo chamado A Fonte, grupo aliás acompanhado pelo bispo de Milão, o Cardeal Martini. Aqui fica a notícia.

18.9.03

Vi há dias, no programa "Estes Difíceis Amores", um conversa sobre juízos de valor acerca de vários comportamentos na área da sexualidade. Não se disse muita coisa que eu não tivesse ouvido, mas o Júlio Machado Vaz disse uma coisa interessante: que se deu, no século XX, demasiada importância aos comportamentos sexuais, e que, por exemplo, não fazia sentido dividir as pessoas em hetero e homo, só pela sua preferência.

Isto pôs-me a pensar. Há uns anos, um amigo meu espanhol, que não é católico, dizia que, ainda que achasse que havia coisas interessantes na moral sexual católica, havia nessa moral, em geral, uma obsessão com o sexo.
Mais tarde, o Frei Fred veio a explicar-me que, em matéria de sexualidade, a moral tradicional dizia que todo o pecado era potencialmente mortal.
Ora, para um pecado ser mortal, é necessário haver três coisas: (i) plena advertência - a pessoa estar informada que aquilo é pecado - (ii) pleno consentimento - a pessoa actuar em plena liberdade - e (iii) gravidade da matéria - o assunto ser grave, e o que se dizia é que em coisas de sexo, qualquer assunto era grave. Não sei se isto mudou muito depois do Concílio, julgo que se tenha começado a dar mais relevo ou atenção à liberdade individual ou ao consentimento - o ponto (ii).
Será que a Igreja Católica terá contribuído para esta sobrevalorização - se é que há uma sobrevalorização - do sexo?

Deixo isto à vossa consideração. Deixo também um texto sobre o assunto, de um académico conhecido (nos Estados Unidos), tirado de um site que me pareceu bestial: Religion Online.

16.9.03

Resposta à Exaltação da Cruz 

A origem histórica desta solenidade foi a descoberta dum naco qualquer de madeira que um esperto fez passar por resto da cruz de Jesus para enganar os otários e ganhar umas massas (como se as cruzes naquele tempo não fossem reaproveitadas e deitadas fora quando estavam velhas).

Qual é então o interesse de celebrar a Exaltação da Cruz hoje?

Vem-me à mente uma palavra do nosso mestre, que disse: Quem quiser ser meu discípulo, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. - Mateus 16, 24

Isto pode parecer um bocado masoquista mas penso que é só na aparência. É que todos nós temos uma cruz e podemos tentar fugir-lhe, mas não serve de nada. Jesus incita-nos a viver a nossa vida, mesmo as partes difíceis. E com coragem porque ele também passou pelo mesmo.

Para além disso se tentarmos ser pessoas com espinha dorsal podemos arranjar chatices. Se fizermos sempre o que achamos justo e correcto por vezes podemos ter problemas com pessoas que querem que a gente contemporize com situações ou acções menos correctas. Também aí é importante tomarmos a nossa cruz, não nos demitirmos do nosso cristianismo ou envergonharmo-nos do que achamos que deve ser feito ou dito.

O que seria do mundo sem pessoas corajosas para lutar pelo que acham correcto? Neste género de ocasiões fica bem citar pessoas como o São Francisco Xavier, ou o São João de Deus, ou o Gandhi, ou o Martin Luther King, ou o Óscar Romero, ou a Madre Teresa de Calcutá. Ora, pode-se argumentar que cada um deles também fez disparates. Pois fez. Mas não se ficou por uma mediocridade fácil, dizendo: olha, eu acho que o mundo devia ser diferente, mas se eu me meto nisto, ainda me lixo; vou mas é ficar aqui na minha vidinha. Não: tomaram a cruz, e seguiram o Senhor. Dumas vezes bem, com erros como todos os humanos, mas seguiram.

É assim que eu entendo o versículo de S. Paulo que é (um pouco parafraseado) a antífona de entrada desta solenidade (e de 5ª feira santa também): Longe de mim gloriar-me sem ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. - Gálatas 6, 14 Não é que a gente queira a cruz pela cruz. Não, o objectivo é alcançar a glória eterna. Mas aquilo que à primeira vista pode parecer a glória afinal pode ser algo que não presta para nada. O mestre aconselhou-nos a ir pela estrada estreita, disse que muitos últimos serão primeiros, aconselhou quem quisesse ser o primeiro de todos a ser criado dos outros...

E a ideia não me parece que seja, neste caso: deixa-me cá ser criado dos outros e ser um coitadinho, que assim é que depois no fim vou ser o mais maior e mais importante e mandar neles todos! Não, não é nada disso: aquilo a que Jesus chama é a uma completa inversão de valores, a uma noção diferente do que é importante: não nós, sozinhos, mas todos como irmãos; não apenas os outros, como se nós não valêssemos nada, mas todos amados por nós mesmos; não todos juntos como massa em que cada um é apenas uma peça, mas todos, amados por Deus individualmente, com um amor único que abrange toda a criação.

E tudo isto só se alcança se deixarmos os nossos individualismos e egocentrismos - e tomarmos a nossa cruz.

É isto que eu penso que havemos de reter da solenidade da Exaltação da Cruz.

Os pecados sociais 

Foi com agrado que li os resultados da última reunião da conferência episcopal portuguesa, no Público.

'Os bispos portugueses colocam a "desarmonia do sistema fiscal", a "irresponsabilidade na estrada" e a "exclusão" na lista do que consideram "pecados sociais" do Portugal contemporâneo.'

Estes sim, são pecados como deve ser. A serem levados a sério, era giro ver as pessoas nos confessionários a dizerem que não pagam o IVA, ou que andam a 100 na avenida de Ceuta enquanto falam ao telemóvel... Ou patrões a dizerem que não só fogem aos impostos como contratam só temporários...

Deixo dois links: a notícia do Público e o texto completo no site da Ecclesia.

Já há tempos tinha escrito sobre uma igreja aqui de Rennes em que as missas eram organizada não só pelo padre, mas por equipas de leigos. Trata-se da Paróquia de Santo Agostinho.

Na missa deste domingo, usaram uma leitura dos Filipenses como credo, que, devo dizer, é mais bonita que a oração habitual: Fl 2, 6-11.

15.9.03

A Comunidade de Santo Egídio promoveu mais um encontro internacional pela paz onde participaram várias individualidades mesmo de fora do campo religioso. De Portugal, esteve presente Mário Soares.

Notícias nos jornais Público e Ouest-France.

13.9.03

Depois de escrever o último post, dei-me conta que o evangelho era de João e não de Marcos, que é o evangelista que andamos a ler agora na missa. Então percebi porquê: é a festa da exaltação da cruz, e daí que o evangelho fale de Jesus ser "levantado".

Quanto a mim, isto de adorar (ou "exaltar") a cruz parece-me um bocadinho estranho. Devíamos estar antes a adorar o crucificado. Não consigo ver na cruz senão um instrumento de tortura, ao qual Jesus se teve que sujeitar por desejo dos senhores religiosos do seu tempo e do povo que gritava "crucifica-o". Jesus não gostou nada de ser crucificado. Por vontade dele morria doutra maneira. O povo e as estruturas de poder religioso e civil do seu tempo é que o obrigaram a isso. Jesus prestou-se a ser bode expoiatório porque nós mandámos.

Perdoem-me a linguagem, mas "exaltar" a cruz parece-me uma forma de desvio, ou disfunção religiosa. É pôr a tónica na coisa em vez de na pessoa. E é logo a Segunda Pessoa.

12.9.03

Reparei que o evangelho deste domingo é justamente Jesus a falar com Nicodemos (Jo 3, 13-17)

Disse Jesus a Nicodemos:
"Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem.
E como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado;
para que todo aquele que nele crê tenha a vida eterna.
Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele."


Apenas comento que, este texto lembra que a vida eterna vem da fé no Filho, que foi "levantado". É por ele ter sido "levantado", isto é, por ter regressado ao Pai, que quem crê tem a vida. Por ser um homem que chegou junto do Pai.

Porque ele foi um de nos. Foi um homem que ressuscitou.

O texto veio da biblia do Gospelcom, e para ver qual é a leitura do dia, é aqui.

Sobre o Papa

Depois dos longos post's do Duarte, eu não podia ficar atrás. E ja que o Papa volta a ser notícia, aqui vai um resumo (editado e com alguns comentários) do artigo Jean Paul II, un pape conservateur et moderne, por François Houtart, Director do "Centre Tricontinental", Bélgica, saído no jornal "Le Monde Diplomatique", Maio 2002.




Todo um conjunto de circunstâncias viria a encaminhar o novo papa (João Paulo II) para uma restruturação doutrinal, moral e institucional da Igreja católica.

Da teologia da libertação

A teologia da libertação foi objecto de uma repressão específica. Nascida na América Latina, teve também a sua expressão em África, sobretudo entre os teólogos protestantes, na Ásia,a Índia, nas Filipinas e na Coreia do Sul. Sendo, como toda a teologia, uma reflexão sobre Deus, ela tomava por ponto de partida a situação dos pobres e dos oprimidos. Explicitava assim o carácter contextual da situação que viviam, atitude que outras correntes se recusam geralmente a tomar. Indo buscar a sua inspiração ao Evangelho, a teologia da libertação [...] desenvolvia uma espiritualidade e expressões litúrgicas que remontavam às causas da pobreza. Olhava severamente para uma Igreja demasiadas vezes comprometida com os poderes opressores. Falava de libertação no presente, como expressão do amor de Deus pelo seu povo. Resumindo, era perigosa para a ordem, tanto social como eclesiástica. A reacção de Roma foi muito dura. Era-lhe fácil acusar esta corrente teológica de ser marxista, porque ela se fundamentava na existência de estruturas de classes. Uma perspectiva destas, dizia o Cardeal Ratzinger, conduzia directamente ao ateísmo. Muitos teólogos foram, em consequência, proibidos de ensinar e publicar. Os centros educativos receberam ordens para proibir todo o ensino que se referisse à teologia da libertação. O próprio João Paulo II, em viagem à Nicarágua em 1996, declarou que a teologia da libertação já não tinha razão de existir, visto que o marxismo estava morto.

As comunidades eclesiásticas de base, nascidas na América Latina e caracterizadas pela defesa dos pobres e pela auto-gestão foram marginalizadas e por vezes mesmo destruídas: transferiram-lhes os padres que eram seus conselheiros, interditou-se-lhes o acesso às paróquias, e criaram-se outras, exactamente com o mesmo nome, mas sob a égide clerical.

Dos conselhos episcopais

A colegiatura episcopal [os sínodos de bispos], um dos pontos fortes do Concílio Vaticano II, foi claramente subordinada por João Paulo II à autoridade de Roma. Os sínodos gerais ou continentais transformaram-se muitas vezes em lugares de desabafo, sem grandes consequências. O seu documento final tinha que ser aprovado pelo Papa antes de ser publicado e, muitas vezes, foi mesmo modificado, tendo por vezes o sínodo que assinar um documento final preparado pela Santa Sé.

Para levar a bom termo o seu projecto fundamental, a restauração doutrinal e moral, João Paulo II necessitava de uma instituição portadora desse projecto. A sua política de nomeações episcopais [de bispos] orientou-se nesse sentido. Em muitas dioceses, e por inspiração da Santa Sé, os novos bispos tentaram controlar os centros de formação, desmantelar o trabalho pastoral dos seus antecessores, introduzir congregações religiosas ou organizações católicas conservadoras. Na América Latina, o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAm), que estava na vanguarda da renovação e que tinha organizado, em 1968, a Conferência de Medellin para a apliacação do Concílio Vaticano II no continente, foi-se gradualmente transformando num órgão dessa restauração. Recorrendo ao expediente das novas nomeações, foram alteradas as orientações das conferências episcopais. Centenas de dioceses, pelo mundo inteiro, passaram por dolorosas transições pastorais que resultaram muitas vezes em dramas pessoais, sobretudo no caso daquelas pessoas que tinham acreditado numa Igreja profética e numa instituição mais humana.

Da Opus Dei

Em 1982, quatro anos depois da eleição de João Paulo II, a Opus Dei adquiriu um estatuto de prelatura pessoal, acima da jurisdição dos bispos. O seu fundador, Josemaria Escrivá de Balaguer, foi canonizado em 2002, apenas 27 anos após a sua morte. Vários dos seus membros acederam ao episcopado, especialmente nas dioceses importantes, e alguns ao cardinalato. Foi sobretudo na administração central da Igreja católica (a Cúria) que a sua influência se fez sentir. Os seus membros ocupam cargos importantes em numerosos sectores, e beneficiam de "promoções" internas. A "Obra de Deus" poderá desempenhar um papel importante na designação do sucessor do actual papa. A sua orientação visa evangelizar através do poder, fazendo da espiritualidade um símbolo de excelência social.

Do comunismo

O novo papa iria rapidamente traduzir [a inspiração do Concílio] num duplo confronto com as forças hostis à mensagem cristã: primeiro o comunismo ateu, e depois a secularização ocidental.

Nos países onde o comunismo pemanecia no poder, encorajou a criação de um contra-poder. Daí as visitas à Polónia, que permitiram uma mobilização religiosa, bem como um apoio ao Solidarnosc [movimento sindicalista polaco] -- inclusivamente no plano financeiro, através do Banco Ambrosiano.

A luta anti-comunista não exigia apenas uma Igreja forte e disciplinada, mas também uma aliança com outras forças económicas e políticas. Assim se explicam os numerosos comprometimentos com o poder norte-americano, cujas várias organizações católicas, na Europa e em Roma, canalizaram fundos oficiais e secretos em benefício do Solidarnosc. Daí decorre também a tolerância perante regimes ditatoriais de direita, como no Chile, na Argentina ou nas Filipinas. Nos tempos do ditador Pinichet, o agora cardeal Angelo Sodano, na altura núncio papal no Chile, chegou a referir-se ao regime nos seguintes termos: "Até as obras-primas podem ter borrões; convido-vos a não se deterem nos borrões do quadro, mas a contemplarem o conjunto, que é maravilhoso." Os artífices destas relações duvidosas viram-se promovidos por João Paulo II à direcção de importantes órgãos da Santa Sé, com a secretaria de estado à cabeça [ocupada justamente pelo Cardeal Sodano]. Daí resulta, por fim, a intervenção em favor do general Pinochet ou, num plano simbólica, a beatificação em 1998 do Cardeal Stepinak, que estivera próximo do regime fascista croata durante a Segunda Guerra Mundial.

Da secularização

O segundo adversário de João Paulo II foi a secularização ocidental, caracterizada pelo relativismo, a sedução do consumo e o hedonismo. Por isso recordava, com muito vigor, os valores do amor ao próximo, da solidariedade e da moderação no uso dos bens materiais. Mais uma vez, fê-lo num quadro doutrinal e moral de tal maneira rígido que a mensagem pemaneceu durante muito tempo incompreendida e, a final de contas, pouco eficaz. Infelizmente! Porque a humanidade aspira pela espiritualidade e procura um sentido para as coisas.

Do ecumenismo

É verdade que, em matéria de relacionamentos com as outras confissões cristãs e as outras religiões, ocorreram algumas manifestações impressionantes, como os encontros de Assis em 1986 e 2002, o jejum no último dia do Ramadão em 2001, etc. Mas a intransigência doutrinal e os obstáculos a uma colaboração mais institucional, nomeadamente com o Conselho Ecuménico das Igrejas, colocaram limites intransponíveis a determinados progressos. Os pedidos de perdão pelos erros cometidos por membros da Igreja católica -- no tempo das cruzadas, da inquisição ou ainda por comportamentos racistas ou anti-semitas -- nunca puseram em causa as responsabilidades da instituição em si mesma.

Dos apelos à paz

Uma outra preocupacão do papa João Paulo II foi a demanda da paz. Opôs-se à guerra do Golfo, alertou contra a do Kosovo, declarou-se reservado no Afeganistão. Reivindicou o direito dos palestinianos a terem um Estado. A paz entre os povos, fundada na justiça presente nas suas relações, foi um tema constantemente repetido. João Paulo II mostrou-se atento aos sofrimentos das vítimas, aos povos sujeitos às mortíferas restrições impostas pelos embargos: condenou os que visavam o Iraque e Cuba. Outras tantas posições foram assumidas por fidelidade ao Evangelho. Infelizmente, a chamada de atenção para esses valores ficava-se, na maioria das vezes, pelo abstracto. O papa nunca esclareceu as causas verdadeiras das guerras, nem as suas ligações ao imperialismo económico. Além disso, a aliança de facto entre a Santa Sé e os poderes económicos e políticos do Ocidente mantém-se, a pretexto de uma lógica institucional, o que faz com que o discurso sobre a guerra perca credibilidade.

Conclusão

Na "Gaudium et Spes" [um documento do Concílio], o Vaticano II encarava o papel da Igreja como inspiração moral e não como exercício de um poder. Querer partilhar as alegrias e as esperanças da humanidade parecia relevar de um optimismo no limite do realismo, mas era o fruto de uma inspiração programática.

A cristandade tem necessidade de um papa, dizia Harvey Cox, um teólogo baptista, professor em Harvard, mas, acrescentava, enquanto expressão simbólica da unidade e não enquanto poder.

11.9.03

…há regiões e épocas onde é preciso que a Igreja tenha escolas, e aí tem a obrigação de as ter; há regiões e épocas onde não é preciso que a Igreja tenha escolas, e aí tem a obrigação de não as ter.

1. Colocação do problema

Será que é função da Igreja Católica ter negócios privados? Que pensaríamos nós se a Igreja Católica decidisse abrir uma cadeia de supermercados? uma fábrica de automóveis? salões de cabeleireiro? uma cadeia de restaurantes? lojas de pronto-a-vestir?...
Seria ridículo, não seria? Então, porque é que ninguém se espanta com a existência de uma Universidade pseudo-Católica Portuguesa?!?

2. Âmbito da questão

Em primeiro lugar, esclareça-se que nada do que será dito se aplica à Faculdade de Teologia, por razões que melhor se verá adiante, e que se prendem com o ser essa faculdade um instrumento de divulgação e estudo de matérias relacionadas com a fé cristã e a esta subordinadas.
Em segundo lugar, embora no que se segue seja colocada ênfase no caso da UCP, o que será dito aplica-se também a todas as escolas geridas pela Igreja Católica, primárias, secundárias, técnicas ou superiores; e a outros negócios em que se envolveu e envolve indevidamente a Igreja, como adiante se verá.

3. Primeiro argumento: as obras de misericórdia

Pode-se argumentar que «ensinar os ignorantes» é uma obra de misericórdia. Este ensino não é meramente o religioso, mas também o secular. Alguém ignorante não tem acesso a todas as possibilidade de desenvolvimento pessoal e profissional e de realização nesses campos. Assim, a Igreja faz bem em ter uma Universidade.

3.1 Primeira refutação: um serviço para os pobres

Este argumento não tem fundamento. A Igreja também faz bem em «dar de comer a quem tem fome», «dar de beber a quem tem sede», «vestir os nus», etc.. Assim, são ajudadas inúmeras pessoas em países em vias de desenvolvimento, e também em países desenvolvidos, onde, por causa de desigualdades sociais, há também muitos pobres que necessitam de auxílio. Ora, esse meritório auxílio de alimentos, água potável, roupas, etc., é dado aos pobres, e gratuitamente.
No que diz respeito ao ensino secular, com certeza que a Igreja faz bem em apoiar os pobres. Por exemplo, no nosso país há instituições católicas que dão explicações em bairros degradados. Isso é uma actividade óptima, porque é um apoio a crianças que, pelo ambiente familiar e cultural que as rodeia, facilmente teriam fraco aproveitamento escolar ou deixariam mesmo o sistema de ensino. Assim, talvez consigam melhores oportunidades no futuro.
Mas a UCP está longe de ser gratuita e de se destinar aos pobres.

3.2 Segunda refutação: circunstâncias em que o argumento seria admissível

É razoável admitir que a Igreja abra escolas em dois casos.
O primeiro é o dos países onde não há escolas em número suficiente. Por exemplo, em África desde há muito que há muitas escolas nas missões, que foram e ainda são para muitos a única hipótese viável de adquirir instrução elementar.
O segundo é o dos países onde as escolas existentes têm grande falta de qualidade. Por exemplo, estou convencido de que, se tiver qualidade (não sei se tem: não estou informado sobre isso), a Universidade Católica Angolana poderá ser das melhores coisas que a Igreja pode fazer por Angola, país onde as escolas públicas carecem notoriamente de qualidade.
Ora no nosso país existem escolas, públicas e privadas, em número suficiente para toda a população e com qualidade. Assim, não há qualquer necessidade de intervenção da Igreja.

3.3 Terceira refutação: as outras obras de misericórdia

Mais: visto não se destinar a pobres e ser (muito bem) paga, o paralelo da UCP no campo do «dar de comer a quem tem fome» seria uma cadeia de restaurantes ou de supermercados; no campo do «vestir os nus» seria uma cadeia de pronto-a-vestir ou uma fábrica têxtil; e por aí fora. O ridículo que seria meter-se a Igreja em tais negócios mostra como é ridículo que a Igreja tenha um negócio privado na área do ensino superior em Portugal.

4. Segundo argumento: a educação católica

Poderá argumentar-se que o ensino é algo que forma a personalidade de uma pessoa. Assim, convém que a juventude tenha uma educação católica.

4.1 Primeira refutação: a UCP não é católica

Eu pergunto: é católica, a UCP? Não é.
Primeiro, os docentes não são necessariamente católicos, e isso é perfeitamente razoável: um docente do curso em Engenharia Industrial não é mais ou menos competente em assuntos técnicos por rezar Pai-Nossos ou Avé-Marias; um docente da Faculdade de Ciências Económicas e da Empresa não é mais ou menos competente em matérias económicas por se confessar; um docente da Faculdade de Direito não passa a conhecer melhor as leis por crer nos Doze Artigos. É que, repita-se, trata-se de educação secular, não religiosa. (Também quando se distribuem roupas ou alimentos aos pobres não se vai verificar se o agricultor que cultivou as batatas não é ateu ou se o operário que teceu o tecido crê na Santíssima Trindade...)
Segundo, os currículos não são católicos. A Universidade Católica tem fama e proveito de qualidade, e não o consegue à força de ensinar Teologia aos estudantes de Engenharia, Liturgia aos de Gestão ou Cânones aos de Direito. Há, é certo, para lá umas poucas cadeiras sobre doutrina social da Igreja. Quem conhecer alunos da Católica poderá verificar que são sempre encaradas como uma estopada que tem de se aturar e despachar para se aprender o que importa. Aliás, se alguém não conhecer Leão 13 ou Pio 11 e seus documentos, será pior engenheiro, gestor ou jurista?
Terceiro, os alunos não são católicos. A questão religiosa nunca tem qualquer importância na escolha da Universidade. A maioria dos discentes da UCP são, como a maioria dos portugueses, católicos não-praticantes ou ateus.

4.1.1 Objecção a esta primeira refutação

Poderia tentar-se argumentar que na UCP até há um capelão competente, missas regulares, peregrinações, etc.; e que portanto as alminhas dos alunos são assim postas em contacto com a Igreja e com a sua doutrina.

4.1.2 Refutação da objecção

Essas actividades existem na UCP, são boas e bem organizadas. Mas não alcançam sequer a maioria dos alunos da UCP, não fazem com que estes possam ser designados colectivamente por católicos (torno a frisar que a maioria não o é), nem transformam a UCP numa instituição católica.
Note-se que o ambiente da UCP é o mesmo das outras universidades, com os mesmos méritos e desméritos morais. (Talvez seja em média mais «beto» porque a conjugação de propinas elevadas e fama de qualidade selecciona alunos de uma certa extracção social.)
Aliás, a Igreja faz bem em levar a cabo essas actividades — missas, peregrinações, apoio espiritual, acompanhamento, celebrações... — em todas as universidades e escolas (e também em hospitais, prisões...), e não só na UCP. É, aliás, pena que não o faça em todo o lado com o empenho que põe na UCP.

4.2 Segunda refutação: não são necessárias escolas católicas

A pretensão de que uma educação católica requer escolas operadas pela Igreja é manifestamente infundada. O seu paralelo na área do «dar de comer a quem tem fome» seria pretender que só se devia comer em restaurantes católicos; no campo do «vestir os nus» seria pretender que só se devia vestir roupas de estilistas católicos...
Poder-se-ia dizer que no caso das escolas católicas estas são «diferentes» das outras, mais «católicas». Pelo mesmo argumento, também teríamos, na área do «dar de comer a quem tem fome», uma cadeia de supermercados católica «diferente», que não promovesse o consumismo mas sim a união familiar; no campo do «vestir os nus», uma cadeia de pronto-a-vestir católica «diferente», onde a roupa de senhora não seguisse modas indecentes... E que mais se seguiria? Bancos católicos «diferentes» que concedessem empréstimos não para fins consumistas mas para fins de acordo com a moral e os bons costumes? Centros comerciais católicos «diferentes» que encerrassem aos domingos e dias santos e cujos cinemas «diferentes» passassem filmes censurados nas partes imorais?

5. Argumentos adicionais

Seguem-se alguns argumentos adicionais por vezes invocados a favor da UCP e das escolas católicas em geral que não são muito relevantes. A leitura desta secção pode ser omitida sem prejuízo para a inteligência do resto do texto, a começar na secção 6.

5.1 Terceiro argumento: o desenvolvimento social

Haverá quem diga que é importante para o país haver ensino (superior ou não) de qualidade, e que a Igreja Católica faz bem em assegurá-lo.

5.1.1 Refutação

Isto é apenas uma variante do primeiro argumento. Cá em Portugal não faz falta nenhuma a actividade da Igreja neste campo. Claro que o ensino superior é importante para o desenvolvimento económico e social. Mas precisará a Igreja de suprir essa falta? Não precisa, como atrás justifiquei.

5.2 Quarto argumento: a qualidade das escolas católicas

Haverá quem diga que as escolas católicas são em média muito boas.

5.2.1 Refutação

Isto é um caso de um argumento non sequitur: é um argumento que não tem nada a ver com a discussão. Há escolas católicas muito boas; e então? Isso torna-as automaticamente morais? Será que a Igreja tem, então, direito de fazer o que quiser, desde que o faça muito bem?
Além disso, também há escolas católicas que não são boas.

5.3 Quinto argumento: os defensores do fim das escolas católicas

Haverá quem diga que quem defende estas ideias são ateus (ou comunistas, ou outra designação qualquer com conotações negativas para o destinatário) que o que querem é destruir a Igreja ou pelo menos diminuir a sua influência.

5.3.1 Refutação

Isto é um argumento ad hominem: como não se tem, na realidade, argumentos para defender uma posição, ataca-se e calunia-se quem pensa o contrário. Ora, não só o facto de alguém ser ateu (ou comunista) não mostra que tudo o que diz é logo à partida falso, como há muitos católicos que defendem o fim das escolas pretensamente católicas, vendo que não passam de uma prostituição da missão da Igreja.

5.4 Sexto argumento: o papel social da Igreja

Haverá quem diga que é preciso garantir a presença da Igreja na sociedade e nos meios culturais e científicos, e fazer chegar a mensagem de Cristo aos jovens, aos estudantes, académicos e intelectuais; e que atacar a UCP e as escolas católica é negá-lo.

5.4.1 Refutação

Isto é um argumento straw man: como não se tem, na realidade, argumentos contra uma certa posição, distorce-se essa posição por forma a que fique mais ridícula e mais fácil de refutar.
Por um lado, defender o fim das escolas pretensamente católicas não tem rigorosamente nada a ver com defender o fim da presença da Igreja nos meios referidos.
Por outro lado, sucede que a existência de escolas pretensamente católicas não é um bom meio de conseguir esse objectivo. É exactamente o contrário. Estão-se a criar guetos para os católicos em vez de difundir a mensagem de Jesus por todas as pessoas. A Igreja deve estar presente — sem nunca tentar impor-se — em todas as escolas e universidades, e não apenas em algumas por ela geridas.

5.5 Sétimo argumento: a liberdade de escolha

Poder-se-ia argumentar que só vai para escolas católicas quem quer. Quem não quer, não vai.

5.5.1 Refutação

Este é outro argumento non sequitur. O que está aqui em questão é que é imoral que essas escolas existam. É certo que ninguém é obrigado a ir para lá, mas só a sua existência já é imoral, como se mostrou atrás.

5.6 Oitavo argumento: a tradição

Haverá quem diga que é tradição ininterrupta da Igreja, desde a Idade Média, que deve haver estabelecimentos de ensino católicos, e pretenda que isso pertence à Tradição que é fundamento de doutrina. Por outras palavras: toda a vida foi assim, logo deve continuar a ser.

5.6.1 Refutação

Essa tradição não pertence à Tradição que é fundamento de doutrina. Nem todas as tradições são boas e parte da Tradição (deveremos ainda pretender que as autoridades seculares executem os hereges?). A existência de escolas católicas no nosso país (e na Europa em geral) era apropriada para outros tempos, porque, outrora, se a Igreja não tivesse escolas, ninguém teria. Era portanto desejável que a Igreja as tivesse, e até era dever gravíssimo da Igreja fazê-lo, por ser a única entidade com condições para tal.
Como visto acima, hoje, em Portugal, a situação é bem diversa, e portanto as escolas católicas não têm razão de ser. Em resumo: há regiões e épocas onde é preciso que a Igreja tenha escolas, e aí tem a obrigação de as ter; há regiões e épocas onde não é preciso que a Igreja tenha escolas, e aí tem a obrigação de não as ter.

5.6.2 Objecção à refutação

Poderá pretender-se que essa tradição é apoiada pelo Magistério da Igreja, que ensina desde há muito tempo que é razoável que a Igreja opere escolas e universidades, e continua a fazê-lo em documentos recentíssimos.

5.6.3 Refutação da objecção

Este é um argumento ad baculum, isto é, um que resulta de, sendo impossível defender racionalmente uma posição, se recorrer, à falta de tudo o mais, meramente à autoridade.
O Magistério da Igreja não é sempre infalível: só o é num limitado número de casos. Claro que habitualmente providencia boas recomendações e que, sabendo-se que defende uma posição, isso nos deve levar a uma séria reflexão sobre o assunto. Mas o Magistério pode perfeitamente tomar decisões erradas. A Igreja Católica não é, felizmente, uma seita, que exija uniformidade de pensamento e que encoraje a padronização dos seus membros. Há muitas seitas assim, mas acham-se em erro, porque nada nos dispensa de empregar as nossas próprias faculdades intelectuais para avaliar as questões. É até imoral que abdiquemos de o fazer, seja com que desculpa for, pretendendo deixar a outros a tarefa de raciocinar por nós.
Concretamente, o Magistério já produziu documentos a defender a escravatura ou acções militares contra povos não-cristãos. Felizmente já não defende isso; e porquê? Porque foram surgindo na Igreja pessoas dotadas de actividade intelectual, que, reflectindo sobre esses assuntos, viram que os anteriores pronunciamentos do Magistério estavam condicionados pelas circunstâncias históricas e sociais em que se originaram, e que portanto era não só razoável como necessário reavaliar esses assuntos.
Se não houvesse pessoas a pensar por si na Igreja, ela seria um corpo estagnado e imóvel, como um cadáver putrefacto. Não é isso felizmente que se passa. Aliás, se todos se limitassem a conformar-se minuciosamente com as orientações do Magistério do seu tempo, também a Igreja não seria o que é hoje!
O mesmo se passa com a questão das escolas católicas.

6. Generalização: os meios de comunicação social

Outra área onde a Igreja gosta de arranjar negócios é o da comunicação social.
Naturalmente que a Igreja faz bem em propagar o Evangelho usando livros, jornais, vídeos, filmes, a rádio, a televisão. Do mesmo modo que acho perfeitamente justificável que a Igreja tenha edifícios para os cristãos se reunirem e se celebrar o culto ou para fazer reuniões de formação cristã (para leigos, seminaristas...), ou para viverem lá as pessoas que fizeram votos (como os religiosos), bem como a mobília, a loiça, a instalação sonora e outras coisas do género que lá fazem falta, também acho razoável que a Igreja tenha editoras para publicar livros cristãos (a começar pelas Escrituras Sagradas) e vídeos cristãos, que edite jornais cristãos, que compre espaço de antena para anunciar o Evangelho, etc..
Mas que diríamos nós de uma Editora Católica que se metesse a publicar fotonovelas, ou compêndios de Matemáticas, ou romances, ou editasse revistas sobre moda, ou sobre viagens?
Então porque é que será razoável que a Igreja tenha três canais de rádio que não são só para anunciar o Evangelho, difundir notícias cristãs e transmitir celebrações de culto, mas que passam música, notícias, concursos...? E porque é que a Igreja tentou mesmo ter uma cadeia de televisão (coisa de que felizmente já se deixou, embora infelizmente apenas porque não deu dinheiro e não porque percebeu que não tem nada que se meter em negócios)?
Para quem venha com o espírito cristão que supostamente imbui toda essa actividade (argumento usado por exemplo para a Emissora Católica: diz-se que há um espírito cristão que enforma toda a programação, concursos e música incluídos, e não só os terços e as missas), relembro os paralelos atrás enumerados: o supermercado «cristão», a roupa «cristã», os cinemas «cristãos»...

6.1 Os meios de comunicação social verdadeiramente católicos

No que diz respeito aos meios de comunicação social católicos, há várias editoras e livrarias que fazem um trabalho louvável a difundir livros católicos, e também há jornais católicos que fazem um óptimo trabalho.
É certo que apesar da censura eclesiástica poderão ser editados livros ou jornais com maus conteúdos. Mas não é imoral que existam tais editoras e tais jornais.
Já não se pode dizer o mesmo de certas editoras, livrarias e jornais que ao mesmo tempo que se dedicam a material católico também têm outras actividades noutras áreas que em nada dizem respeito a religião.
Quanto a um canal católico brasileiro transmitido na TV cabo, embora não goste do seu conteúdo, não acho imoral que exista; muito pelo contrário, porque só transmite programas e notícias de natureza verdadeiramente católica. Só tenho pena que não tenha uma programação mais esclarecida e se assemelhe, lamentavelmente, a uma versão católica da IURD.
O princípio a aplicar aqui é o mesmo. Publicar livros seculares ou transmitir notícias seculares não faz falta nenhuma no nosso país (a primeira coisa pode fazer falta em países pobres onde há falta de livros; a segunda coisa pode fazer falta em países onde há regimes despóticos que usam a censura, e onde a Igreja pode ser um espaço de liberdade; o nosso país, felizmente, não se acha nestes casos), porque há entidades públicas e privadas que o asseguram. Logo a Igreja não tem nada que o fazer.

7. Escolas que a Igreja deve manter: a Faculdade de Teologia

Expostos os argumentos, fica claro que a Faculdade de Teologia nada tem a ver com o que atrás foi dito, visto ensinar e investigar matérias que nada têm de secular e se destinar essencialmente a propagar a doutrina. É como uma editora que publique Bíblias ou vidas e obras de santos.
As outras faculdades são como uma editora pseudo-católica que publique livros de receitas ou roteiros turísticos.

8. Continuação de alguns argumentos anteriores: o Reino de Deus é semelhante ao fermento

Pode haver uma tentação de ter uma universidade «católica» porque se pode confiar nela tal como se confia em livros publicados por uma editora «católica» ou em emissões de uma rádio «católica». Essa é a tentação de não ser fermento na massa mas sim uma massa à parte. Não foi a isso que Jesus nos chamou. Chamou-nos a anunciar o Evangelho e propagá-lo por todos os meios — livros, rádio, jornais, revistas, televisão —; mas não temos nada que nos encerrar em guetos. Como cristãos temos de enformar toda a sociedade para a evangelizar, não de nos chegar para o lado. Há maus jornais? maus livros? más revistas? más escolas? Há. Também há más lojas, más indústrias, maus patrões, maus postos de trabalho, maus produtos, más companhias: a criação geme como que em dores de parto; mas se nos afastarmos melindrados com preocupações de pureza — afastando-nos para grupelhos à parte que nos dão uma falsa sensação de segurança — e não fizermos força — participando plenamente no mundo de que somos parte —, nunca nascerá o Reino.

O que se segue não é, claro, uma exposição completa, mas uma mera recolecção do que pude ver e observar nestes dias que estive em Cambridge.

* A LOW-CHURCH ANGLICANA

Visitei uma igreja anglicana que era claramente da low-church. Já tinha suspeitado disso porque por fora tinham um painel em que para cada domingo havia um texto bíblico e o título do sermão. O facto de só haver um texto e a natureza dos títulos fez-me desconfiar que eles não seriam muito ritualistas e teriam uns cultos mais afastados da liturgia católica.

No dia em que visitei a igreja estava a haver uma confraternização das criancinhas pequenas e o chão estava todo ocupado com mantas cobertas de brinquedos e as criancinhas andavam lá por cima que nem num infantário. Umas quantas pessoas estavam a tomar conta delas. Perguntei se podia visitar a igreja e uma senhora pediu a uma rapariga que andava por lá para me levar ao balcão (que ao contrário do que é habitual nos coros dá a volta a três dos lados da igreja). Daí pude ver que a igreja tinha sido recentemente adaptada na parte do altar-mor (à frente do qual se acumulavam cadeiras e bancos que tinham sido arredados para as crianças brincarem). É que nessa zona só havia um púlpito ao meio e em grande destaque. Isso é costume em certas igrejas protestantes, como por exemplo entre os baptistas, mas não entre os anglicanos.

Perguntei se uma certa mesa que vi não seria a mesa da comunhão. A rapariga explicou que quando há comunhão eles primeiro distribuem o pão e o vinho e todos dizem juntos as palavras da consagração. Uma vez mais isso parece-se com a prática de igrejas bem mais radicais que os anglicanos. Perguntei se eles não deviam seguir a liturgia devidamente aprovada (que é muito semelhante à católica). A resposta foi: dever, devíamos, mas não lhe ligamos nenhuma, e nunca ninguém nos chateou. Não sei o que é o que o bispo lá da terra anda a fazer...

Quer no que ela me disse quer nos folhetos da igreja a ênfase era sempre posta na Bíblia e na sua leitura.

* O ECUMENISMO COM OS METODISTAS

Ouvi dizer há uns tempos que os anglicanos e metodistas andavam em negociações para se fundirem na Inglaterra. A nível local, isso já sucede. Pelo caminho, no autocarro, vi uma paróquia conjunta anglicano-metodista. E em Cambridge a igreja metodista tinha cultos conjuntamente com uma paróquia anglicana do outro lado da rua.

Nessa igreja anglicana também se notava, como na igreja de que falei acima, a ausência de sacralidade do espaço no sentido em que é entendido por certos católicos, que parece pensarem que a igreja é um sítio para andar em bicos de pés sem falar, senão ainda se acorda Deus que está a dormir! O culto tinha acabado e havia claros restos dentro da igreja de uma refeição tomada em comum lá dentro. É coisa que já sabia ser habitual em certas igrejas: no fim do culto toma-se chá e bolinhos enquanto toda a gente convive. Lá estavam as cafeteiras, caixas vazias (de bolinhos e batatas fritas) e até havia um bolo de chocolate.

A um canto havia claramente um espaço para as crianças estarem entretidas, com brinquedos. A igreja tinha uma cancela enorme a separar o altar-mor do resto, e por isso havia um novo altar à frente dela. Sim, aqui já havia altar, e até havia uma imagem da Virgem Maria com velas a arder à frente... Mas mais surpresas me esperavam.

* A HIGH-CHURCH

A igreja de Santa Maria Maior é conhecida como igreja da Universidade por haver lá certas cerimónias universitárias, segundo parece. É um sítio eminentemente turístico onde se vendem, à entrada, postais e livros, bem como bilhetes para subir à torre (donde se tem uma bela vista).

Em certo lugar da igreja havia também uma imagem da Virgem Maria com velas a arder à frente, e podiam-se comprar velas para pôr lá. Mas o que mais me espantou foi ver uma capela do Santíssimo. Sim, apesar de rejeitarem a transsubstanciação, há igrejas anglicanas que têm capelas do santíssimo... Naquela até havia um letreiro à porta a explicar o que era a capela e a desejar que a Sagrada Reserva fosse o centro da oração naquela capela. Lá estava o sacrário, com a lamparina a arder como é habitual nas igrejas católicas.

* AS ORDENS RELIGIOSAS

Um dia vi um monge a sair duma igreja e espantei-me porque pensava que a igreja era anglicana. Isto porque sabia onde era a igreja católica e nunca esperei que houvesse mais que uma em Cambridge. Quando fui a entrar na igreja fiquei mais confuso. O letreiro à porta dizia que o prior era um tal irmão Simon e anunciava, além das missas e do ofício divino, uma hora para as devoções do Santíssimo Sacramento. Só que também anunciava uma eucaristia celebrada por uma mulher.

Ao entrar fiquei ainda mais confuso. Vi numa parede uma via sacra. Não havia água benta à porta. Mas vi uns jornais claramente franciscanos (chamavam-se Franciscan e tinham imagens de frades). Depois reparei que os missais e hinários eram todos anglicanos...

Percebi lendo os jornais que há ordens religiosas na comunhão anglicana! Fiquei mesmo muito espantado, porque não sabia. Parece que há uma Sociedade de São Francisco, com três ordens (religiosos - religiosas - leigos e leigas, tal como na Igreja Católica). Têm boas relações com os franciscanos católicos e parece que até com uns franciscanos de algumas Igrejas Luteranas!

Claramente estas ordens são expoentes da high-church. Já vi na net a regra da ordem que recomenda a todos os irmãos o sacramento da confissão, pelo qual os nossos pecados são perdoados, bem como a comunhão diária. E tem links para imensas ordens religiosas anglicanas, entre os quais até beneditinos...

Na capela-mor dessa igreja havia também um sacrário com a lamparina. Devo dizer que apesar das pertinentíssimas dúvidas (aliás, certezas) sobre a validade da consagração (aliás, invalidade; tanto pelos erros doutrinais da Igreja Anglicana, que fazem duvidar da intenção do presbítero, como pela ordenação que este recebeu, visto que a Igreja Católica considera as ordens anglicanas como «nulas e absolutamente vãs»), não pude deixar de me ajoelhar perante tão evidente e manifesto sinal da acção do Espírito Santo.

* OUTRAS IGREJAS

Visitei mais igrejas que não eram tão notáveis por algum pormenor relacionado com o culto. Visitei ainda mais duas que já não estão abertas ao culto por não serem necessárias. Uma é a igreja Redonda, construída logo após uma cruzada segundo o modelo (redondo) da igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém. Nessa igreja reunia-se a congregação que se mudou depois (por ser muito grande) para uma igreja maior (exactamente a primeira congregação de que vos falei, a da low-church, que não liga nada à liturgia anglicana).

Visitei outra igreja fechada, a de Todos-os-Santos, cuja chave tive de ir pedir a uma loja (e depois experimentar em todas as fechaduras de todas as portas da igreja, que era enorme, até que descobri uma porta nas traseiras por onde consegui entrar). É a maior de Cambridge e a mais bela (embora a necessitar dumas obras). Não sei porque a terão fechado. É mesmo lindíssima e acolhedora.

* LIGAÇÕES

http://www.anglicancommunion.org
Tem ligações para todas as igrejas nacionais que compõem a Comunhão Anglicana (entre as quais a Igreja da Inglaterra e a Igreja Lusitana - http://www.igreja-lusitana.org/).
http://orders.anglican.org
Ordens anglicanas (não todas, mas muitas estão alojadas aqui).

* A IGREJA CATÓLICA INGLESA

Só visitei uma igreja e não posso julgar toda a Igreja por uma só missa. Na paróquia de Cambridge havia missas em inglês, italiano, polaco e latim. Foi a esta última que eu pude ir. Toda a liturgia foi em latim, salvo a primeira leitura, a segunda leitura, a homilia, as intenções da oração universal e os avisos no fim da missa, que foram em inglês.

De resto, quase tudo se cantou. O coro cantou o Introito gregoriano, todos cantámos o Confiteor e o Kyrie (gregorianos), o coro cantou o Gloria (polifonia), o padre cantou a colecta, o coro cantou o Tracto e o Alleluia (gregorianos), todos cantámos o Credo e as respostas às intenções da oração universal (em gregoriano), o coro cantou duas antífonas de ofertório (uma durante a procissão e outra durante as incensações), o padre cantou o prefácio, todos cantámos o Sanctus (gregoriano), o padre cantou a Anáfora, todos cantámos o Pater e o Agnus (gregorianos), e o coro cantou a antífona da comunhão. Usou-se, como disse, o incenso; havia grande número de acólitos (incluindo um ceroferário mongolóide, que eu estava era a ver que pegava lume a alguma coisa) e acólitas (de várias idades); e distribui-se a comunhão sob as duas espécies: o padre e um acólito instituído distribuíam o corpo do Senhor, e ao lado duas ministras da comunhão davam o cálice a beber (e limpavam-no com o sanguíneo no fim).

* A ORDENAÇÃO DE MULHERES

Vi muitas igrejas anglicanas onde ministravam presbiteressas; mas não era disso que vos queria falar. Comprei um livro muito bom, dum teólogo católico muito conhecido chamado John Wijngaards. O livro é sobre as diaconisas que houve na Igreja durante o primeiro século. O autor defende que esse ministério era uma ordem maior e que portanto essas diaconisas (entre as quais mulheres conhecidas, como Santa Apolónia ou Santa Genoveva) receberam o sacramento da Ordem. Parece que recentemente o Vaticano decidiu que essas mulheres não receberam o sacramento da Ordem, mas apenas uma bênção. É o contrário que este autor busca demonstrar. Se alguém quiser o livro emprestado que mo diga (ou então podem comprá-lo em http://www.womenpriests.org).

Começa hoje este blog. Aqui publicaremos, o Duarte e eu, comentarios e artigos sobre assuntos religiosos, de um ponto de vista cristao e catolico.

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