30.1.06
As Testemunhas de Jeová e as transfusões de sangue
Excelente artigo do Washington Post acerca da doutrina (sem fundamento bíblico) das Testemunhas de Jeová segundo a qual Deus proíbe as transfusões de sangue. Mais informações (em português) aqui (na secção "Sangue").
23.1.06
O código Da Vinci
E na sequência do meu último comentário, mais umas ideias sobre O código Da Vinci, livro tão falado nos últimos tempos, vilipendiado por uns e adorado por outros. É um livro que
Mas estas três características são independentes. O livro podia ser uma belíssima obra literária mesmo estando cheio de erros históricos. (Há vários romances históricos do século 19 assim.) Podia ser factualmente correcto e defender pontos de vista com os quais não concordasse. E podia ser uma jóia de ortodoxia cristã e ser uma bela porcaria literária. As outras combinações (são 8 ao todo!) são igualmente possíveis. (O Dan Brown logo foi calhar na pior categoria possível!)
Isto para frisar que criticar um livro, dizendo que é uma má obra literária, por ter erros, ou por atacar o cristianismo, é uma imbecilidade. Infelizmente, alguns cristãos, fazem-no, e erram.
- é uma má obra literária;
- está cheio de erros históricos e factuais; e
- pressupõe pontos de vista religiosos com que não concordo.
Mas estas três características são independentes. O livro podia ser uma belíssima obra literária mesmo estando cheio de erros históricos. (Há vários romances históricos do século 19 assim.) Podia ser factualmente correcto e defender pontos de vista com os quais não concordasse. E podia ser uma jóia de ortodoxia cristã e ser uma bela porcaria literária. As outras combinações (são 8 ao todo!) são igualmente possíveis. (O Dan Brown logo foi calhar na pior categoria possível!)
Isto para frisar que criticar um livro, dizendo que é uma má obra literária, por ter erros, ou por atacar o cristianismo, é uma imbecilidade. Infelizmente, alguns cristãos, fazem-no, e erram.
Mais dois textos sobre Nárnia, e comentário a um deles
Eis aqui um belo artigo sobre As Crónicas de Nárnia, do New York Times.
O Pedro mandou-me um artigo de opinião publicano no The Guardian, um conhecido jornal inglês, também sobre As Crónicas de Nárnia. A autora, que adopta uma posição ateísta, diz muitas concordo com que concordo, e outras de que discordo. Aqui comento alguns pontos, sobretudo dos da última categoria.
And a Kent parish is giving away £10,000 worth of film tickets to single-parent families. (Are the children of single mothers in special need of the word?)
The president's brother, Jeb Bush, the governor of Florida, is organising a scheme for every child in his state to read the book. Walden Media, co-producer of the movie, offers a "17-week Narnia Bible study for children". The owner of Walden Media is both a big Republican donor and a donor to the Florida governor's book promotion - a neat synergy of politics, religion and product placement. It has aroused protests from Americans United for Separation of Church and State (...)
E muito bem.
Of all the elements of Christianity, the most repugnant is the notion of the Christ who took our sins upon himself and sacrificed his body in agony to save our souls. Did we ask him to?
Every one of those thorns, the nuns used to tell my mother, is hammered into Jesus's holy head every day that you don't eat your greens or say your prayers when you are told.
Because here in Narnia is the perfect Republican, muscular Christianity for America - that warped, distorted neo-fascist strain that thinks might is proof of right. I once heard the famous preacher Norman Vincent Peale in New York expound a sermon that reassured his wealthy congregation that they were made rich by God because they deserved it.
[Aslan] is an emblem for everything an atheist objects to in religion. His divine presence is a way to avoid humans taking responsibility for everything here and now on earth, where no one is watching, no one is guiding, no one is judging and there is no other place yet to come. Without an Aslan, there is no one here but ourselves to suffer for our sins, no one to redeem us but ourselves: we are obliged to settle our own disputes and do what we can. We need no holy guide books, only a very human moral compass.
* * *
O Pedro mandou-me um artigo de opinião publicano no The Guardian, um conhecido jornal inglês, também sobre As Crónicas de Nárnia. A autora, que adopta uma posição ateísta, diz muitas concordo com que concordo, e outras de que discordo. Aqui comento alguns pontos, sobretudo dos da última categoria.
And a Kent parish is giving away £10,000 worth of film tickets to single-parent families. (Are the children of single mothers in special need of the word?)
- Provavelmente (com muitas excepções para ambos os lados!), estão, sim, mais que as outras.
- Isto é verdade mesmo que seja discutível se a tal paróquia fez bem.
The president's brother, Jeb Bush, the governor of Florida, is organising a scheme for every child in his state to read the book. Walden Media, co-producer of the movie, offers a "17-week Narnia Bible study for children". The owner of Walden Media is both a big Republican donor and a donor to the Florida governor's book promotion - a neat synergy of politics, religion and product placement. It has aroused protests from Americans United for Separation of Church and State (...)
E muito bem.
Of all the elements of Christianity, the most repugnant is the notion of the Christ who took our sins upon himself and sacrificed his body in agony to save our souls. Did we ask him to?
- Não, e isso é exactamente um dos pontos mais importantes da mensagem cristã. Deus salva-nos de graça, sem que nós o mereçamos e não porque nós o queiramos, mas sim livremente de sua própria vontade - Romanos 5,6-8 - e por amor às criaturas que ele mesmo formou, para que venham a ser como ele - 1 João 3, 1-2. É por isso que a salvação é um dom, algo que é oferecido
- Os cristãos também ensinam (excepção feita a alguns calvinistas e presbiterianos exacerbados) que, sendo a salvação um dom, pode ser aceite ou não, porque Deus nos criou e quer livres. Quem quiser procurar outro salvador, ou quem quiser tentar salvar-se a si próprio, ou quem achar que nem precisa de ser salvo, pois esteja à vontade e boa sorte... por muito triste que isso seja, sobretudo para o próprio.
Every one of those thorns, the nuns used to tell my mother, is hammered into Jesus's holy head every day that you don't eat your greens or say your prayers when you are told.
- C. S. Lewis notava que muitas das críticas feitas ao cristianismo são na verdade feitas a uma versão deturpada e simplificada do cristianismo própria para crianças com cinco anos de idade. Isto aqui acima é uma versão imprópria do cristianismo para criancinhas... Não é justo julgar os cristãos por tais baboseiras.
- Tem de se ter muito cuidado com o que diz às crianças. Jesus disse: deixai vir a mim as criancinhas - Mateus 19,13-15 e paralelos. Dizeres estultos como esses acima estorvam muito as crianças de ver Jesus, e pelos vistos também adultos: até a filha da tal senhora é ateia e provavelmente a terceira geração está a ser educada assim também. Péssimo trabalho que essas más freiras fizeram!
Because here in Narnia is the perfect Republican, muscular Christianity for America - that warped, distorted neo-fascist strain that thinks might is proof of right. I once heard the famous preacher Norman Vincent Peale in New York expound a sermon that reassured his wealthy congregation that they were made rich by God because they deserved it.
- Tal ideia é repugnante ao cristianismo. Esse herege que desviava almas tem a Bíblia inteira contra si - Tiago 5,1-6 é um exemplo entre muitíssimos.
- Mas julgo injusto acusar C. S. Lewis dela. Isso vê-se no segundo livro da série (agora publicado com o número 4), Prince Caspian. É, penso eu, um dos piores e mais mal conseguidos, além de ter várias características que o tornam impróprio para crianças. Tem subjacente uma visão da guerra legítima e da violência admissível que não posso partilhar, e me parece errada do ponto de vista cristão. Lewis pensava mesmo assim, e justifica-se no seu (quase sempre bastante bom, salvo em pouco pontos, entre os quais este!) Mere Christianity. Ele diz que, se durante a Primeira Guerra Mundial (na qual lutou, e perdeu um grande amigo), ele e um jovem soldado alemão se tivessem morto um ao outro numa batalha, e depois se encontrassem logo a seguir na vida eterna, decerto não se sentiriam nada embaraçados por causa disso. Talvez até se rissem... Este ponto de vista (que me parece muito influenciado pela fleuma britânica e pelo sentido das propriedades de além-Mancha!) será hoje dificilmente subscrito por alguém (mesmo britânico!).
- Contudo, dizia eu que apesar dos defeitos do Prince Caspian se vê nele que Lewis não liga a força à razão. Os seguidores de Caspian X, filho do falecido rei Caspian IX, estão claramente em inferioridade face às forças do usurpador Miraz.
- Mais um exemplo, entre outros: no último livro, The last battle, Nárnia é conquistada pelos calormenos.
[Aslan] is an emblem for everything an atheist objects to in religion. His divine presence is a way to avoid humans taking responsibility for everything here and now on earth, where no one is watching, no one is guiding, no one is judging and there is no other place yet to come. Without an Aslan, there is no one here but ourselves to suffer for our sins, no one to redeem us but ourselves: we are obliged to settle our own disputes and do what we can. We need no holy guide books, only a very human moral compass.
- É exactamente a isto que os cristãos têm objecções. Porque existe alguém que nos criou, nos vê, nos guia e nos julga; alguém que sofre pelos nossos pecados e nos redime, e nos traz a um mundo para além deste. Porque a vida não se esgota nesta, porque há uma razão para não sermos egoístas nem hedonistas. Porque qualquer bússola humana gira sem nunca encontrar nenhum Norte. Porque por muita boa vontade que tenhamos não nos tornamos pessoas diferentes e por isso todos os esquemas para melhorar a humanidade e a sociedade falham por si mesmos.
- Há muitos livros que promovem pontos de vista ateus. Não é por isso que deixam de ser boas obras literárias, ou que deixam de o ser. Pretender que um livro é literariamente mau só porque tem um certo conjunto de ideias subjacentes é injusto. Mais que isso: revela uma concepção avessa à existência de pontos de vista diferentes e à liberdade de expressão.
Jesus existiu
A Enciclopédia Britânica diz, no artigo sobre Jesus, que sempre se admitiu a existência de Jesus, que só foi posta em dúvida, e em termos inadequados, nos últimos séculos. Um belo livro que li, A verdadeira história de Jesus Cristo, e que, apesar do título algo sensacionalista da tradução portuguesa, é uma obra séria dum historiador americano, que não adopta um ponto de vista cristão, também conclui pela insuficiência dos argumentos dos que sustentam que Jesus jamais existiu.
E contudo há quem se agarre a essa ideia, muitas vezes por motivos religiosos! É o caso do autor do livro Heresias, da famosa colecção francesa Que sais-je?, e de que foi publicada em português uma tradução horrorosa feita por um incompetente qualquer (que claramente não percebia nada do cristianismo). Esse autor é claramente ateu, e portanto aferra-se à inexistência de Jesus. Dá a sensação de que o faz não por motivos racionais, mas porque quer fundamentar a sua (des)crença.
É pena, porque a existência (ou não) duma personagem (supostamente) histórica é questão histórica, não de fé!
Uma notícia na página 10 do Metro de hoje diz que um italiano qualquer, ateu, processou um padre por ter escrito na folha paroquial que Jesus existiu. O sistema judicial italiano terá tentado eximir-se a esta farsa (afinal de contas a justiça em Itália é lenta, e desperdiçar recursos com processos imbecis só a atrasa mais), mas está a ter de levar a questão avante.
E se agora alguém se lembra de questionar a existência de Buda (tão duvidosa quanto a de Cristo) ou de Zaratustra (mais ainda)? Ou de processar muçulmanos por mencionarem milagres (não) feitos por Muhammad? Ou (num âmbito secular) de processar alguém por afirmar que Homero existiu (hoje pensa-se que não)?...
E contudo há quem se agarre a essa ideia, muitas vezes por motivos religiosos! É o caso do autor do livro Heresias, da famosa colecção francesa Que sais-je?, e de que foi publicada em português uma tradução horrorosa feita por um incompetente qualquer (que claramente não percebia nada do cristianismo). Esse autor é claramente ateu, e portanto aferra-se à inexistência de Jesus. Dá a sensação de que o faz não por motivos racionais, mas porque quer fundamentar a sua (des)crença.
É pena, porque a existência (ou não) duma personagem (supostamente) histórica é questão histórica, não de fé!
Uma notícia na página 10 do Metro de hoje diz que um italiano qualquer, ateu, processou um padre por ter escrito na folha paroquial que Jesus existiu. O sistema judicial italiano terá tentado eximir-se a esta farsa (afinal de contas a justiça em Itália é lenta, e desperdiçar recursos com processos imbecis só a atrasa mais), mas está a ter de levar a questão avante.
E se agora alguém se lembra de questionar a existência de Buda (tão duvidosa quanto a de Cristo) ou de Zaratustra (mais ainda)? Ou de processar muçulmanos por mencionarem milagres (não) feitos por Muhammad? Ou (num âmbito secular) de processar alguém por afirmar que Homero existiu (hoje pensa-se que não)?...
Unidade dos Cristãos
E na sequência da última notícia aqui está uma Carta ecuménica subscrita por Ortodoxos, Protestantes, Velho-católicos, Católicos e vários outros Cristãos da Europa, que o Pedro me mandou.
18.1.06
Semana de Oração pela unidade dos cristãos
Começa hoje, subordinada ao tema bíblico: «Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles» (Mateus 18, 18-20).
Site do Conselho mundial de Igrejas
Meditação do papa
Site do Conselho mundial de Igrejas
Meditação do papa
16.1.06
2º Domingo, Tempo Comum, ano B - Evangelho
O prior da minha paróquia comentou o Evangelho deste dia, em que dois discípulos de João Baptista seguem Jesus e o seguem. A primeira coisa que Jesus diz é: Que procurais? E é pergunta que nos faz também a nós. Então Jesus convidou-os a irem a sua casa. Ora só seguindo Jesus podemos descobrir onde ele mora. E isso é assim também connosco.
2º Domingo, Tempo Comum, ano B - 1ª Leitura
A primeira leitura do dia de hoje é das mais conhecidas do Antigo Testamento. E é justo que assim seja. É das mais bonitas e encerra inúmeras lições para nós. Quando é comentada, realçam-se normalmente muitas coisas. Diz-se que Deus também nos quer falar, tal como falou com Samuel. Que precisamos da ajuda de outras pessoas, tal como Samuel precisou da de Eli, para ouvir a voz de Deus. Que é preciso fazermos silêncio para escutarmos o sussurro de Deus na nossa consciência. Que temos de tomar tempo para rezarmos. E por vezes até se fala das vocações aos ministérios ordenados na Igreja, ou das vocações para os votos dos conselhos evangélicos - embora claramente este texto não seja sobre uma vocação desse género; mas sem dúvida que se pode, em sentido acomodatício, aplicar este texto também a essas vocações.
Tudo isto são belas conclusões e óptimas lições para nós. Contudo, quando se diz só isso, comete-se uma grande injustiça. É que a leitura só chega até àquele ponto em que Eli, já farto de ser acordado a meio da noite, diz a Samuel que responda ao chamamento: fala, Senhor, que o teu servo escuta; e Samuel, quando Deus o chama pela quarta vez (e claro que o número aqui é simbólico: três representa uma plenitude dum chamamento, uma insistência completa; Samuel não entendeu das três primeiras vezes, e nem por isso Deus deixa de o chamar), lá diz: fala, Senhor, que o teu servo escuta.
E daqui, do versículo 10, salta-se para o 19, onde lemos que Samuel cresceu e se cumpriu tudo o que ele dizia em nome do Senhor. Mas ninguém quer saber o que é que Deus tinha mesmo para lhe dizer a ele.
E, contudo, Deus tinha algo de muito importante a dizer a Samuel - tanto assim que o acordou quatro vezes, isto é, o chamamento era mais do que completo! Será que a Bíblia não nos conta o que é que seria? Conta, pois. Era algo de muito importante, mesmo. E que também para nós traz uma grande lição. "Tudo o que está escrito nas Escrituras foi escrito para nos ensinar", como diz o apóstolo Paulo na carta que escreveu aos cristãos de Roma (Romanos 15, 4).
«Samuel disse ao Senhor: 'Fala, Senhor, que o teu servo escuta.' O Senhor disse-lhe: 'Um destes dias vou fazer algo ao povo de Israel que é tão terrível que toda a gente que ouvir falar disso vai ficar chocada.'» (1 Samuel 3, 10-11) São más notícias, portanto. E talvez seja por isso que quase nunca ninguém lê esta parte. Não se gosta de más notícias.
E aliás, que história é esta de Deus andar a dar más notícias? Então o Filho de Deus, Jesus, o Messias, não veio ao mundo exactamente para anunciar o Evangelho, isto é, em português, a Boa Nova, ou, em melhor português ainda, as Boas Notícias? Deus, que é um Deus de amor (1 João 4, 8), com certeza que não anda aí a espalhar más notícias! Não será que este texto do Antigo Testamento, que põe Deus a fazer isso, não é apenas resultado de na altura ainda não se conhecer bem Deus e de se terem ainda muitas ideias erradas que só com o passar dos tempos e finalmente com a vinda de Jesus é que se haviam de esclarecer?
É verdade que há textos assim no Antigo Testamento, que ainda reflectem uma mentalidade primitiva, e conceitos que só mais tarde haveriam de ser corrigidos. (Um exemplo, entre muitos, é o do sacrifício de Isaac, em Génesis 22.) Mas este não é um deles. Aliás, o que é que são essas tais boas notícias acerca de Jesus Cristo? Que notícias são essas? São notícias acerca de um Messias que foi abandonado pelos amigos, traído por um deles, preso, alvo de uma farsa de um julgamento, condenado injustamente, torturado, escarnecido, executado da forma mais cruel e mais humilhante que havia, e morto numa agonia atroz. Essas são as boas notícias que nós anunciamos.
E contudo... E contudo, dessa morte humilhante e atroz tirou Deus o maior milagre da História. Jesus morreu, efectivamente - "desceu à mansão dos mortos", assim dizemos nós no credo dos Apóstolos. Esse homem, que viveu há uns dois mil anos na Palestina, morreu - como milhares de milhões antes e depois dele, e como morreremos também nós um dia. E contudo, a vida de Jesus não se terminou nessa morte. A morte de Jesus não foi o fim de tudo, como queriam os seus inimigos. Jesus está vivo, numa vida diferente, sentado à direita do Pai, isto é, glorificado. E aos seus discípulos e apóstolos "apareceu muitas vezes de maneiras que provavam sem sombra para dúvida que ele estava vivo" (Actos 1, 3), não já como era dantes - era o mesmo, e tinha nas mãos e nos pés as marcas dos cravos com que fora executado (João 20, 20); e por outro lado já não era o mesmo, porque não entrava nem saía por portas, e a sua glória só palidamente era percebida pelos seus discípulos (João 20, 19; João 21, 7). Ele tinha de passar por tudo aquilo para "entrar na sua glória" (Lucas 24, 26). E por isso também para nós permanece verdade o que cantamos na entrada da Ceia do Senhor na quinta-feira santa: "toda a nossa glória está na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo" (como escreveu Paulo em Gálatas 6, 14).
Da mesma forma que sucedeu com Jesus, também Deus tirará de todos os desastres, problemas e aflições da nossa vida algo de muito melhor. E também nós ressuscitaremos como ele. Portanto, não tenhamos medo de más notícias. "Nenhum aluno é mais do que o seu mestre" (Mateus 10, 24), e como sucedeu com Jesus, também nós temos problemas, aflições, coisas más na nossa vida, injustiças e desaires. Mas confiemos que Deus "enxugará todas as lágrimas" (Apocalipse 7, 17) e de tudo isso tirará uns novos céus e uma nova terra (Apocalipse 21, 1).
Ora, para percebermos essas tais más notícias que Deus deu a Samuel, convém sabermos quem ele era, onde estava, e quem era o tal sacerdote idoso Eli que tão bons conselhos lhe deu (até porque as más notícias diziam respeito a Eli). Samuel estava num santuário do Senhor que havia em Silo. Nessa altura ainda não havia nenhum templo em Jerusalém. Samuel, quando ficou mais velho, é que ungiu o primeiro rei de Israel, Saul; e ungiu também o segundo, David, que era general (e conseguiu tornar-se rei no lugar do chefe de estado a quem tinha obedecido - nem todos conseguem...). Foi só o filho de David, Salomão, que foi o terceiro rei de Israel, que construiu um templo em Jerusalém. Mas quando Samuel era novo ainda não havia nada disso, e havia quem prestasse culto ao Senhor em casa (Juízes 17, 5), ou no cimo dos montes (1 Reis 3, 2 - o Senhor é o Deus dos céus, como até um estrangeiro lhe chamou em Esdras 1, 2, e portanto era lógico que no cimo dos montes se estivesse mais perto dele) - mas ali, em Silo, havia um santuário especial, porque era ali que estava a Arca da Aliança. A Arca da Aliança era um sinal da presença do Senhor que vinha dos tempos em que os israelitas tinham andado às voltas no deserto sob a liderança de Moisés; era uma espécie de trono vazio, que tinha dois querubins esculpidos no cimo, e nada no meio, porque não se podia fazer imagens nenhumas do Senhor ("não farás imagem alguma de coisa alguma que exista na terra, nos céus por cima da terra ou nas águas por baixo da terra", lá dizem os dez mandamentos em Êxodo 20, 4); até se chamava ao Senhor, por vezes, "aquele que está sentado entre os querubins" (1 Samuel 4, 4; Salmo 99, 1). E nesse santuário havia um sacerdote que era o tal Eli. Também lá eram sacerdotes os dois filhos dele, porque nessa altura o sacerdócio era uma coisa que passava de pais para filhos. Os filhos de Eli chamavam-se Ofni e Fineias. Mas Samuel não era da família deles.
O pai de Samuel chamava-se Elcana, e tinha duas mulheres, porque nesse tempo havia poligamia. A poligamia era uma coisa que funcionava tão bem que as tais duas mulheres de Elcana não se podiam ver uma à outra, e para complicar as coisas uma tinha filhos e a outra não. Claro que a que não tinha filhos, que se chamava Ana, era gozada à força toda pela outra, porque afinal de contas nesses tempos uma mulher servia mas era para ter filhos, e se uma mulher não tivesse filhos isso até era considerado um castigo de Deus. De modo que Ana, de uma vez que foi lá ao tal santuário em Silo, rezou a Deus e prometeu que se tivesse filhos o primeiro havia de ir lá para ficar a servi-lo, e assim foi. O primeiro filho foi o já nosso conhecido Samuel, e assim que ele deixou de ser amamentado lá o levou a mãe ao santuário em Silo, e ele ficou a viver lá com o sacerdote Eli e a ajudá-lo. (Esta história toda vem em 1 Samuel 1, 1-28)
Vivia, portanto, entre uma família estranha, que não era a dele, e tudo o que tinha, devia-o a essa família estranha que o tinha recolhido e tomava conta dele. O tal Eli parece que até era boa pessoa; não há motivo para suspeitar que tivesse tratado mal Samuel, e como vimos logo no princípio até lhe deu muito bons conselhos. Mas os filhos dele já não eram assim. A Bíblia até diz: "os filhos de Eli eram uns reles e não queriam saber do Senhor" (1 Samuel 2, 12). Na verdade, tratavam muito mal as pessoas que iam ao santuário e roubavam quanto podiam para eles. Aproveitavam-se da sua situação de sacerdotes de forma indevida e descarada. É que naquele tempo faziam-se muitos sacrifícios ao Senhor de animais, farinha, azeite e ainda outras coisas. Dependendo do que é que era sacrificado e da razão pela qual se fazia o sacrifício, assim havia regras diferentes a dizer qual era o destino a dar à comida, e, se fosse um animal, a dizer o que é que se fazia às várias partes do bicho (as tripas, a gordura, a carne, o sangue, etc.). Como regra geral, havia três destinos: ou se queimava, ou era para o sacerdote, ou era para quem oferecia o sacrifício. Algumas coisas eram para o sacerdote porque ele também tinha de viver de alguma coisa e era esse o modo como o sacerdote era pago. Quanto à comida que era para quem oferecia, fazia-se uma refeição em família. Isso era um bom exemplo para nós, porque dava uma dimensão colectiva, social e familiar à religião, enquanto que por vezes hoje em dia somos demasiados individualistas e perdemos de vista o alcance colectivo e social da mensagem de Jesus. Mas adiante.
O que sucedia era que os tais Ofni e Fineias tiravam mais comida do que deviam. "Eles desprezavam as regras sobre o que é que os sacerdotes podiam exigir do povo. Em vez disso, quando alguém estava a oferecer um sacrifício, o criado do sacerdote aparecia com um garfo de três bicos. Quando a carne ainda estava a cozer, ele metia o garfo na panela, e o que quer que conseguisse apanhar era para o sacerdote. Todos os Israelitas que iam a Silo oferecer sacrifícios eram tratados desta maneira. Ainda por cima, mesmo antes de se tirar e queimar a gordura, o criado do sacerdote aparecia e dizia a quem estivesse a oferecer o sacrifício: 'Dá-me carne para o sacerdote assar. Ele só vai aceitar carne crua, não quer carne cozida.' Se a pessoa respondesse: 'Vamos fazer as coisas como deve ser e queimar a gordura primeiro; depois levas o que quiseres', o criado do sacerdote dizia: 'Não! Dá-me a carne já! Senão, vou ter de ta tirar à força!' Este pecado dos filhos de Eli era extremamente sério aos olhos do Senhor, porque eles tratavam as ofertas ao Senhor com tal falta de respeito." (1 Samuel 2, 13-17) E ainda por cima, Ofni e Fineias "dormiam com as mulheres que trabalhavam à entrada do santuário" (1 Samuel 2, 22).
Ora, o pai deles não os conseguia meter na ordem. Parece que lá lhes disse: "Porque é que vocês andam a fazer estas coisas? Toda a gente me vem falar do mal que vocês fazem. Parem com isso, meus filhos! Isso é uma coisa péssima de que o povo do Senhor anda a falar! Se alguém pecar contra outra pessoa, Deus pode defender o que foi enganado; mas quem é que pode defender alguém que peca contra o Senhor?" (1 Samuel 2, 23-25) Mas eles não lhe ligaram nenhuma. E o pai também não fez mais: talvez por serem seus filhos e querer poupá-los e mimá-los.
Portanto, Samuel cresceu no meio disto tudo, a ver as injustiças praticadas por Ofni e Fineias. O que é que ele havia de fazer? Nem sequer era da família deles! E mais: Eli, Ofni e Fineias eram sacerdotes, e ele não era. Ainda por cima, tudo o que ele tinha era dado por essa família. Claro que o mais fácil era fechar os olhos e dizer que estava tudo bem. Afinal de contas, se ele achasse mal, estava a ser ingrato com quem lhe dava o pão! Ou será que não era assim?
Quantas vezes não pode suceder o mesmo connosco? Quantas vezes não é mais fácil olhar à nossa volta e dizer que está certo e correcto o que dizem ou fazem os nossos pais, os nossos professores, ou, para quem trabalha, o chefe? Dum modo ou doutro dependemos dessas pessoas. E o mesmo se passa no caso de amigos, vizinhos, colegas, sobretudo se estamos a dever algum favor ou se precisamos de algum favor. O mais fácil é fechar os olhos e dizer: não quero chatices!...
Não foi isso que fez Samuel. Por esse motivo o exemplo dele é tão importante para nós. Claro que ele sabia que tinha deveres para com Eli e para com a família dele. Quando ouviu um chamamento no seu íntimo, a princípio foi ter com ele. Mas Eli mostrou-lhe que o principal não era servi-lo a ele, mas a Deus, adorado no santuário onde estavam. E Samuel percebeu finalmente que "é mais importante obedecer a Deus do que aos homens" (Actos 5, 29). Ele tinha obrigações para com Eli, Ofni e Fineias, e devia-lhes muito, mas isso não podia calar a voz da sua consciência. Não podia achar que o que eles faziam estava certo. E menos ainda podia fazer o mesmo que eles faziam, se viesse a ter oportunidade. Ao entender o que é que era mais importante, a voz de Deus falou-lhe ao coração.
Como seria bom se sucedesse o mesmo connosco! Como seria bom se conseguíssemos sempre perceber o que é justo e injusto, certo e errado! Mesmo quando seja alguém de que gostamos que está enganado e faz algo de errado, incorrecto ou imoral. Mesmo quando seja alguém de quem dependemos, de quem precisamos e a quem devemos favores que esteja a fazer coisas inaceitáveis ou a ter um comportamento vergonhoso. Mesmo quando isso nos possa prejudicar, mesmo quando alguém possa achar que somos ingratos por aquilo que pudermos ter recebido, mesmo quando alguém ache que a nossa consciência, a nossa opinião ou o nosso voto já deviam estar compradas. É que a nossa posição e a nossa consciência não podem ser vendidas assim.
Claro que por vezes traz aborrecimentos. Claro que por vezes há quem não perceba. Claro que por vezes isso nos prejudica. E pior: por vezes - não, é mesmo a maioria das vezes! - custa a perceber o que é que é mesmo certo ou justo! Também custou a Samuel. Também o dilema foi para ele difícil. Para nós também pode ser. Mas não é por isso que podemos abdicar da nossa consciência. Deixemos que o Espírito Santo fale nela.
Samuel não só soube ser fiel à sua consciência, como, quando Eli o confrontou com isso, também não mentiu. É claro que ele não o queria afrontar! O Senhor tinha-lhe dito: "Um destes dias vou fazer algo ao povo de Israel que é tão terrível que toda a gente que ouvir falar disso vai ficar chocada. Nesse dia vou levar a cabo todas as ameaças que fiz contra a família de Eli, desde a primeira até à última. Já lhe disse que vou castigar a família dele para sempre porque os filhos dele falam mal de mim. Eli sabia o que eles andavam a fazer, mas não os impediu. Por isso declaro solenemente à família de Eli que nenhum sacrifício ou oferta há-de conseguir remover as consequências desse pecado terrível." (1 Samuel 3, 11-14) Naturalmente, ele "estava com medo de contar a Eli da visão" (1 Samuel 3, 15)! Mas Samuel insistiu com ele e disse-lhe: "O que é que o Senhor te contou? Não me escondas nada. Deus há-de castigar-te severamente se me não disseres tudo o que ele contou." (1 Samuel 3, 17) E Samuel também não fingiu, dizendo que achava tudo bem. Felizmente para ele, Eli até reconheceu que a repreensão era merecida. "Eli disse: 'Ele é o Senhor; ele há-de fazer o que quer que lhe parecer melhor." (1 Samuel 3, 17) Outras pessoas há que não têm tanta sorte em situações semelhantes.
Era bom que conseguíssemos seguir este exemplo de Samuel. É que Deus quer efectivamente falar-nos, no nosso íntimo, como o fez com ele, pelo Espírito Santo que foi "derramado nos nossos corações" (Romanos 5, 5). E nós podemos "ouvir a sua voz" (João 3, 8), como disse Jesus... ou podemos escolher não a ouvir. É triste, mas podemos efectivamente calar a voz da nossa consciência, não lhe ligar, deturpá-la, torcê-la, extinguir essa chama do amor de Deus que nela arde que é o Espírito Santo, e acabar por expulsá-lo. Sim, os nossos pecados podem conseguir isso: expulsar o Espírito Santo.
Mas, em vez disso, se o ouvirmos, poderemos seguir o conselho de S. Paulo: "deixem-se transformar interiormente por uma completa mudança de mentalidade. Então hão-de ser capazes de conhecer a vontade de Deus, o que é bom e o que lhe é agradável e o que é perfeito." (Romanos 12, 2) E verificar-se-á o que disse Jesus: "Se alguém tem sede, venha a mim, e se alguém acredita em mim, que beba. Como diz a Escritura, do seu interior hão-de correr rios de água viva." (João 7, 37-38) O evangelista João explica: "Jesus disse isto sobre o Espírito que aqueles que acreditassem nele iam receber" (João 7, 39). Oxalá possamos ser assim discípulos de Jesus!
Uns tempos depois houve uma guerra com os Filisteus. Ofni e Fineias levaram a Arca da Aliança para o campo de batalha, como se fosse um amuleto! Pensavam os israelitas que Deus estaria mais perto tendo eles aquela Arca ali e que assim não perderiam. (Quantas vezes não fazemos nós o mesmo! Sabemos que Deus é omnipotente, isto é, todo-poderoso, mas também achamos que podemos controlá-lo por algum meio: orações, amuletos, promessas, esmolas, ofertas...) Mas "houve uma grande chacina, e morreram trinta mil soldados israelitas" (1 Samuel 4, 10), e "os filhos de Eli, Ofni e Fineias foram mortos" (1 Samuel 4, 11). Eli, que tinha ficado em casa, ao saber da notícia, "caiu da cadeira junto ao portão para trás", e "na queda partiu o pescoço, e morreu" (1 Samuel 4, 18).
Tudo isto são belas conclusões e óptimas lições para nós. Contudo, quando se diz só isso, comete-se uma grande injustiça. É que a leitura só chega até àquele ponto em que Eli, já farto de ser acordado a meio da noite, diz a Samuel que responda ao chamamento: fala, Senhor, que o teu servo escuta; e Samuel, quando Deus o chama pela quarta vez (e claro que o número aqui é simbólico: três representa uma plenitude dum chamamento, uma insistência completa; Samuel não entendeu das três primeiras vezes, e nem por isso Deus deixa de o chamar), lá diz: fala, Senhor, que o teu servo escuta.
E daqui, do versículo 10, salta-se para o 19, onde lemos que Samuel cresceu e se cumpriu tudo o que ele dizia em nome do Senhor. Mas ninguém quer saber o que é que Deus tinha mesmo para lhe dizer a ele.
E, contudo, Deus tinha algo de muito importante a dizer a Samuel - tanto assim que o acordou quatro vezes, isto é, o chamamento era mais do que completo! Será que a Bíblia não nos conta o que é que seria? Conta, pois. Era algo de muito importante, mesmo. E que também para nós traz uma grande lição. "Tudo o que está escrito nas Escrituras foi escrito para nos ensinar", como diz o apóstolo Paulo na carta que escreveu aos cristãos de Roma (Romanos 15, 4).
«Samuel disse ao Senhor: 'Fala, Senhor, que o teu servo escuta.' O Senhor disse-lhe: 'Um destes dias vou fazer algo ao povo de Israel que é tão terrível que toda a gente que ouvir falar disso vai ficar chocada.'» (1 Samuel 3, 10-11) São más notícias, portanto. E talvez seja por isso que quase nunca ninguém lê esta parte. Não se gosta de más notícias.
E aliás, que história é esta de Deus andar a dar más notícias? Então o Filho de Deus, Jesus, o Messias, não veio ao mundo exactamente para anunciar o Evangelho, isto é, em português, a Boa Nova, ou, em melhor português ainda, as Boas Notícias? Deus, que é um Deus de amor (1 João 4, 8), com certeza que não anda aí a espalhar más notícias! Não será que este texto do Antigo Testamento, que põe Deus a fazer isso, não é apenas resultado de na altura ainda não se conhecer bem Deus e de se terem ainda muitas ideias erradas que só com o passar dos tempos e finalmente com a vinda de Jesus é que se haviam de esclarecer?
É verdade que há textos assim no Antigo Testamento, que ainda reflectem uma mentalidade primitiva, e conceitos que só mais tarde haveriam de ser corrigidos. (Um exemplo, entre muitos, é o do sacrifício de Isaac, em Génesis 22.) Mas este não é um deles. Aliás, o que é que são essas tais boas notícias acerca de Jesus Cristo? Que notícias são essas? São notícias acerca de um Messias que foi abandonado pelos amigos, traído por um deles, preso, alvo de uma farsa de um julgamento, condenado injustamente, torturado, escarnecido, executado da forma mais cruel e mais humilhante que havia, e morto numa agonia atroz. Essas são as boas notícias que nós anunciamos.
E contudo... E contudo, dessa morte humilhante e atroz tirou Deus o maior milagre da História. Jesus morreu, efectivamente - "desceu à mansão dos mortos", assim dizemos nós no credo dos Apóstolos. Esse homem, que viveu há uns dois mil anos na Palestina, morreu - como milhares de milhões antes e depois dele, e como morreremos também nós um dia. E contudo, a vida de Jesus não se terminou nessa morte. A morte de Jesus não foi o fim de tudo, como queriam os seus inimigos. Jesus está vivo, numa vida diferente, sentado à direita do Pai, isto é, glorificado. E aos seus discípulos e apóstolos "apareceu muitas vezes de maneiras que provavam sem sombra para dúvida que ele estava vivo" (Actos 1, 3), não já como era dantes - era o mesmo, e tinha nas mãos e nos pés as marcas dos cravos com que fora executado (João 20, 20); e por outro lado já não era o mesmo, porque não entrava nem saía por portas, e a sua glória só palidamente era percebida pelos seus discípulos (João 20, 19; João 21, 7). Ele tinha de passar por tudo aquilo para "entrar na sua glória" (Lucas 24, 26). E por isso também para nós permanece verdade o que cantamos na entrada da Ceia do Senhor na quinta-feira santa: "toda a nossa glória está na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo" (como escreveu Paulo em Gálatas 6, 14).
Da mesma forma que sucedeu com Jesus, também Deus tirará de todos os desastres, problemas e aflições da nossa vida algo de muito melhor. E também nós ressuscitaremos como ele. Portanto, não tenhamos medo de más notícias. "Nenhum aluno é mais do que o seu mestre" (Mateus 10, 24), e como sucedeu com Jesus, também nós temos problemas, aflições, coisas más na nossa vida, injustiças e desaires. Mas confiemos que Deus "enxugará todas as lágrimas" (Apocalipse 7, 17) e de tudo isso tirará uns novos céus e uma nova terra (Apocalipse 21, 1).
Ora, para percebermos essas tais más notícias que Deus deu a Samuel, convém sabermos quem ele era, onde estava, e quem era o tal sacerdote idoso Eli que tão bons conselhos lhe deu (até porque as más notícias diziam respeito a Eli). Samuel estava num santuário do Senhor que havia em Silo. Nessa altura ainda não havia nenhum templo em Jerusalém. Samuel, quando ficou mais velho, é que ungiu o primeiro rei de Israel, Saul; e ungiu também o segundo, David, que era general (e conseguiu tornar-se rei no lugar do chefe de estado a quem tinha obedecido - nem todos conseguem...). Foi só o filho de David, Salomão, que foi o terceiro rei de Israel, que construiu um templo em Jerusalém. Mas quando Samuel era novo ainda não havia nada disso, e havia quem prestasse culto ao Senhor em casa (Juízes 17, 5), ou no cimo dos montes (1 Reis 3, 2 - o Senhor é o Deus dos céus, como até um estrangeiro lhe chamou em Esdras 1, 2, e portanto era lógico que no cimo dos montes se estivesse mais perto dele) - mas ali, em Silo, havia um santuário especial, porque era ali que estava a Arca da Aliança. A Arca da Aliança era um sinal da presença do Senhor que vinha dos tempos em que os israelitas tinham andado às voltas no deserto sob a liderança de Moisés; era uma espécie de trono vazio, que tinha dois querubins esculpidos no cimo, e nada no meio, porque não se podia fazer imagens nenhumas do Senhor ("não farás imagem alguma de coisa alguma que exista na terra, nos céus por cima da terra ou nas águas por baixo da terra", lá dizem os dez mandamentos em Êxodo 20, 4); até se chamava ao Senhor, por vezes, "aquele que está sentado entre os querubins" (1 Samuel 4, 4; Salmo 99, 1). E nesse santuário havia um sacerdote que era o tal Eli. Também lá eram sacerdotes os dois filhos dele, porque nessa altura o sacerdócio era uma coisa que passava de pais para filhos. Os filhos de Eli chamavam-se Ofni e Fineias. Mas Samuel não era da família deles.
O pai de Samuel chamava-se Elcana, e tinha duas mulheres, porque nesse tempo havia poligamia. A poligamia era uma coisa que funcionava tão bem que as tais duas mulheres de Elcana não se podiam ver uma à outra, e para complicar as coisas uma tinha filhos e a outra não. Claro que a que não tinha filhos, que se chamava Ana, era gozada à força toda pela outra, porque afinal de contas nesses tempos uma mulher servia mas era para ter filhos, e se uma mulher não tivesse filhos isso até era considerado um castigo de Deus. De modo que Ana, de uma vez que foi lá ao tal santuário em Silo, rezou a Deus e prometeu que se tivesse filhos o primeiro havia de ir lá para ficar a servi-lo, e assim foi. O primeiro filho foi o já nosso conhecido Samuel, e assim que ele deixou de ser amamentado lá o levou a mãe ao santuário em Silo, e ele ficou a viver lá com o sacerdote Eli e a ajudá-lo. (Esta história toda vem em 1 Samuel 1, 1-28)
Vivia, portanto, entre uma família estranha, que não era a dele, e tudo o que tinha, devia-o a essa família estranha que o tinha recolhido e tomava conta dele. O tal Eli parece que até era boa pessoa; não há motivo para suspeitar que tivesse tratado mal Samuel, e como vimos logo no princípio até lhe deu muito bons conselhos. Mas os filhos dele já não eram assim. A Bíblia até diz: "os filhos de Eli eram uns reles e não queriam saber do Senhor" (1 Samuel 2, 12). Na verdade, tratavam muito mal as pessoas que iam ao santuário e roubavam quanto podiam para eles. Aproveitavam-se da sua situação de sacerdotes de forma indevida e descarada. É que naquele tempo faziam-se muitos sacrifícios ao Senhor de animais, farinha, azeite e ainda outras coisas. Dependendo do que é que era sacrificado e da razão pela qual se fazia o sacrifício, assim havia regras diferentes a dizer qual era o destino a dar à comida, e, se fosse um animal, a dizer o que é que se fazia às várias partes do bicho (as tripas, a gordura, a carne, o sangue, etc.). Como regra geral, havia três destinos: ou se queimava, ou era para o sacerdote, ou era para quem oferecia o sacrifício. Algumas coisas eram para o sacerdote porque ele também tinha de viver de alguma coisa e era esse o modo como o sacerdote era pago. Quanto à comida que era para quem oferecia, fazia-se uma refeição em família. Isso era um bom exemplo para nós, porque dava uma dimensão colectiva, social e familiar à religião, enquanto que por vezes hoje em dia somos demasiados individualistas e perdemos de vista o alcance colectivo e social da mensagem de Jesus. Mas adiante.
O que sucedia era que os tais Ofni e Fineias tiravam mais comida do que deviam. "Eles desprezavam as regras sobre o que é que os sacerdotes podiam exigir do povo. Em vez disso, quando alguém estava a oferecer um sacrifício, o criado do sacerdote aparecia com um garfo de três bicos. Quando a carne ainda estava a cozer, ele metia o garfo na panela, e o que quer que conseguisse apanhar era para o sacerdote. Todos os Israelitas que iam a Silo oferecer sacrifícios eram tratados desta maneira. Ainda por cima, mesmo antes de se tirar e queimar a gordura, o criado do sacerdote aparecia e dizia a quem estivesse a oferecer o sacrifício: 'Dá-me carne para o sacerdote assar. Ele só vai aceitar carne crua, não quer carne cozida.' Se a pessoa respondesse: 'Vamos fazer as coisas como deve ser e queimar a gordura primeiro; depois levas o que quiseres', o criado do sacerdote dizia: 'Não! Dá-me a carne já! Senão, vou ter de ta tirar à força!' Este pecado dos filhos de Eli era extremamente sério aos olhos do Senhor, porque eles tratavam as ofertas ao Senhor com tal falta de respeito." (1 Samuel 2, 13-17) E ainda por cima, Ofni e Fineias "dormiam com as mulheres que trabalhavam à entrada do santuário" (1 Samuel 2, 22).
Ora, o pai deles não os conseguia meter na ordem. Parece que lá lhes disse: "Porque é que vocês andam a fazer estas coisas? Toda a gente me vem falar do mal que vocês fazem. Parem com isso, meus filhos! Isso é uma coisa péssima de que o povo do Senhor anda a falar! Se alguém pecar contra outra pessoa, Deus pode defender o que foi enganado; mas quem é que pode defender alguém que peca contra o Senhor?" (1 Samuel 2, 23-25) Mas eles não lhe ligaram nenhuma. E o pai também não fez mais: talvez por serem seus filhos e querer poupá-los e mimá-los.
Portanto, Samuel cresceu no meio disto tudo, a ver as injustiças praticadas por Ofni e Fineias. O que é que ele havia de fazer? Nem sequer era da família deles! E mais: Eli, Ofni e Fineias eram sacerdotes, e ele não era. Ainda por cima, tudo o que ele tinha era dado por essa família. Claro que o mais fácil era fechar os olhos e dizer que estava tudo bem. Afinal de contas, se ele achasse mal, estava a ser ingrato com quem lhe dava o pão! Ou será que não era assim?
Quantas vezes não pode suceder o mesmo connosco? Quantas vezes não é mais fácil olhar à nossa volta e dizer que está certo e correcto o que dizem ou fazem os nossos pais, os nossos professores, ou, para quem trabalha, o chefe? Dum modo ou doutro dependemos dessas pessoas. E o mesmo se passa no caso de amigos, vizinhos, colegas, sobretudo se estamos a dever algum favor ou se precisamos de algum favor. O mais fácil é fechar os olhos e dizer: não quero chatices!...
Não foi isso que fez Samuel. Por esse motivo o exemplo dele é tão importante para nós. Claro que ele sabia que tinha deveres para com Eli e para com a família dele. Quando ouviu um chamamento no seu íntimo, a princípio foi ter com ele. Mas Eli mostrou-lhe que o principal não era servi-lo a ele, mas a Deus, adorado no santuário onde estavam. E Samuel percebeu finalmente que "é mais importante obedecer a Deus do que aos homens" (Actos 5, 29). Ele tinha obrigações para com Eli, Ofni e Fineias, e devia-lhes muito, mas isso não podia calar a voz da sua consciência. Não podia achar que o que eles faziam estava certo. E menos ainda podia fazer o mesmo que eles faziam, se viesse a ter oportunidade. Ao entender o que é que era mais importante, a voz de Deus falou-lhe ao coração.
Como seria bom se sucedesse o mesmo connosco! Como seria bom se conseguíssemos sempre perceber o que é justo e injusto, certo e errado! Mesmo quando seja alguém de que gostamos que está enganado e faz algo de errado, incorrecto ou imoral. Mesmo quando seja alguém de quem dependemos, de quem precisamos e a quem devemos favores que esteja a fazer coisas inaceitáveis ou a ter um comportamento vergonhoso. Mesmo quando isso nos possa prejudicar, mesmo quando alguém possa achar que somos ingratos por aquilo que pudermos ter recebido, mesmo quando alguém ache que a nossa consciência, a nossa opinião ou o nosso voto já deviam estar compradas. É que a nossa posição e a nossa consciência não podem ser vendidas assim.
Claro que por vezes traz aborrecimentos. Claro que por vezes há quem não perceba. Claro que por vezes isso nos prejudica. E pior: por vezes - não, é mesmo a maioria das vezes! - custa a perceber o que é que é mesmo certo ou justo! Também custou a Samuel. Também o dilema foi para ele difícil. Para nós também pode ser. Mas não é por isso que podemos abdicar da nossa consciência. Deixemos que o Espírito Santo fale nela.
Samuel não só soube ser fiel à sua consciência, como, quando Eli o confrontou com isso, também não mentiu. É claro que ele não o queria afrontar! O Senhor tinha-lhe dito: "Um destes dias vou fazer algo ao povo de Israel que é tão terrível que toda a gente que ouvir falar disso vai ficar chocada. Nesse dia vou levar a cabo todas as ameaças que fiz contra a família de Eli, desde a primeira até à última. Já lhe disse que vou castigar a família dele para sempre porque os filhos dele falam mal de mim. Eli sabia o que eles andavam a fazer, mas não os impediu. Por isso declaro solenemente à família de Eli que nenhum sacrifício ou oferta há-de conseguir remover as consequências desse pecado terrível." (1 Samuel 3, 11-14) Naturalmente, ele "estava com medo de contar a Eli da visão" (1 Samuel 3, 15)! Mas Samuel insistiu com ele e disse-lhe: "O que é que o Senhor te contou? Não me escondas nada. Deus há-de castigar-te severamente se me não disseres tudo o que ele contou." (1 Samuel 3, 17) E Samuel também não fingiu, dizendo que achava tudo bem. Felizmente para ele, Eli até reconheceu que a repreensão era merecida. "Eli disse: 'Ele é o Senhor; ele há-de fazer o que quer que lhe parecer melhor." (1 Samuel 3, 17) Outras pessoas há que não têm tanta sorte em situações semelhantes.
Era bom que conseguíssemos seguir este exemplo de Samuel. É que Deus quer efectivamente falar-nos, no nosso íntimo, como o fez com ele, pelo Espírito Santo que foi "derramado nos nossos corações" (Romanos 5, 5). E nós podemos "ouvir a sua voz" (João 3, 8), como disse Jesus... ou podemos escolher não a ouvir. É triste, mas podemos efectivamente calar a voz da nossa consciência, não lhe ligar, deturpá-la, torcê-la, extinguir essa chama do amor de Deus que nela arde que é o Espírito Santo, e acabar por expulsá-lo. Sim, os nossos pecados podem conseguir isso: expulsar o Espírito Santo.
Mas, em vez disso, se o ouvirmos, poderemos seguir o conselho de S. Paulo: "deixem-se transformar interiormente por uma completa mudança de mentalidade. Então hão-de ser capazes de conhecer a vontade de Deus, o que é bom e o que lhe é agradável e o que é perfeito." (Romanos 12, 2) E verificar-se-á o que disse Jesus: "Se alguém tem sede, venha a mim, e se alguém acredita em mim, que beba. Como diz a Escritura, do seu interior hão-de correr rios de água viva." (João 7, 37-38) O evangelista João explica: "Jesus disse isto sobre o Espírito que aqueles que acreditassem nele iam receber" (João 7, 39). Oxalá possamos ser assim discípulos de Jesus!
Uns tempos depois houve uma guerra com os Filisteus. Ofni e Fineias levaram a Arca da Aliança para o campo de batalha, como se fosse um amuleto! Pensavam os israelitas que Deus estaria mais perto tendo eles aquela Arca ali e que assim não perderiam. (Quantas vezes não fazemos nós o mesmo! Sabemos que Deus é omnipotente, isto é, todo-poderoso, mas também achamos que podemos controlá-lo por algum meio: orações, amuletos, promessas, esmolas, ofertas...) Mas "houve uma grande chacina, e morreram trinta mil soldados israelitas" (1 Samuel 4, 10), e "os filhos de Eli, Ofni e Fineias foram mortos" (1 Samuel 4, 11). Eli, que tinha ficado em casa, ao saber da notícia, "caiu da cadeira junto ao portão para trás", e "na queda partiu o pescoço, e morreu" (1 Samuel 4, 18).
6.1.06
Mais sobre As crónicas de Nárnia
Lendo os livros originais de C. S. Lewis, percebi que Aslan é mesmo imagem de Cristo, por ser filho dum Imperador-de-além-mar que nunca aparece. Este último logicamente será Deus.
E claro que já houve antes quem notasse que os livros seriam uma alegoria. A Wikipedia tem um interessante artigo sobre o assunto. Parece que Lewis afirmou não ser seu objectivo apresentar o cristianismo às crianças. Além disso também usou elementos da mitologia greco-romana...
E claro que já houve antes quem notasse que os livros seriam uma alegoria. A Wikipedia tem um interessante artigo sobre o assunto. Parece que Lewis afirmou não ser seu objectivo apresentar o cristianismo às crianças. Além disso também usou elementos da mitologia greco-romana...
Parque temático «Jesus»
O Pedro Freitas mandou-me uma notícia sobre uns cristãos protestantes americanos que querem construir um parque temático sobre Jesus em Israel, perto do mar da Galileia, onde Jesus exerceu o seu ministério. Alguns temem que um dos seus objectivos seja o proselitismo entre os judeus.