21.4.06
O demónio é o pai da mentira...
...diz a Escritura, e isto vem a propósito dum acontecimento recente. Um cardeal disse, em Roma, ao falar para católicos que faziam o seu exame de consciência, que comparassem o tempo gasto a rezar, meditar e ler a Bíblia com o tempo gasto a ver televisão e com a Net. Resultado? Notícias a dizer que ver televisão ou navegar na Net agora são novos pecados para os católicos. Mas não foi isso que ele disse.
Aqui há uns anos, o patriarca de Lisboa afirmou que achava que era uma questão importante de responsabilidade que quem começa uma relação estável e duradoura fizesse antes exames para ter a certeza de que não infectaria o/a parceiro/a com uma doença sexualmente transmissível. Resultado? Durante semanas disse-se que agora para casar pela Igreja vai ser preciso fazer o teste da sida... estando implícito que era como se a Igreja fosse expulsar quem tivesse sida ou outras doenças sexualmente transmissíveis. Mas não foi isso que ele disse.
Não é só num âmbito religioso que estas deturpações acontecem. Quando o primeiro ministro António Guterres se demitiu, disse fazê-lo para evitar que o país caísse num pântano, e do contexto depreeendia-se que o pântano seria político. Foi depois amplamente citado como tendo dito que se demetia porque o país estava num pântano, e como se esse pântano fosse económico. Até seria verdade, e seria culpa dele. Mas não foi isso que ele disse.
E, mudando um pouco o âmbito, nos 25 anos do 25 de Abril o deputado Francisco Louçã louvou a revolução na Assembleia da República dizendo que antes do 25 de Abril as mulheres precisavam de autorização do marido para ter passaporte. Mentiu, pois isso é tão verdade como dizer que antes do 25 de Abril havia uma monarquia em Portugal. Haver, houve, mas acabou antes do 25 de Abril de 1974: acabou em 1910. Também a necessidade de autorização do marido para ter passaporte acabou antes do 25 de Abril, quando ainda era presidente do conselho Marcello Caetano, e presidente da república Américo Thomaz. Louçã mentiu. E fez mal. Eu detestaria viver num regime político com censura, com uma polícia política e (para todos os efeitos) com uma ditadura partidária, para não falar do desperdício de dinheiro, de vidas e de prestígio internacional que era a guerra colonial. Mas mentir para defender uma coisa boa é o pior que se pode fazer, pois vindo a verdade ao de cima muitos pensarão que afinal a tal coisa não era tão necessária como isso.
Aqui há uns anos, o patriarca de Lisboa afirmou que achava que era uma questão importante de responsabilidade que quem começa uma relação estável e duradoura fizesse antes exames para ter a certeza de que não infectaria o/a parceiro/a com uma doença sexualmente transmissível. Resultado? Durante semanas disse-se que agora para casar pela Igreja vai ser preciso fazer o teste da sida... estando implícito que era como se a Igreja fosse expulsar quem tivesse sida ou outras doenças sexualmente transmissíveis. Mas não foi isso que ele disse.
Não é só num âmbito religioso que estas deturpações acontecem. Quando o primeiro ministro António Guterres se demitiu, disse fazê-lo para evitar que o país caísse num pântano, e do contexto depreeendia-se que o pântano seria político. Foi depois amplamente citado como tendo dito que se demetia porque o país estava num pântano, e como se esse pântano fosse económico. Até seria verdade, e seria culpa dele. Mas não foi isso que ele disse.
E, mudando um pouco o âmbito, nos 25 anos do 25 de Abril o deputado Francisco Louçã louvou a revolução na Assembleia da República dizendo que antes do 25 de Abril as mulheres precisavam de autorização do marido para ter passaporte. Mentiu, pois isso é tão verdade como dizer que antes do 25 de Abril havia uma monarquia em Portugal. Haver, houve, mas acabou antes do 25 de Abril de 1974: acabou em 1910. Também a necessidade de autorização do marido para ter passaporte acabou antes do 25 de Abril, quando ainda era presidente do conselho Marcello Caetano, e presidente da república Américo Thomaz. Louçã mentiu. E fez mal. Eu detestaria viver num regime político com censura, com uma polícia política e (para todos os efeitos) com uma ditadura partidária, para não falar do desperdício de dinheiro, de vidas e de prestígio internacional que era a guerra colonial. Mas mentir para defender uma coisa boa é o pior que se pode fazer, pois vindo a verdade ao de cima muitos pensarão que afinal a tal coisa não era tão necessária como isso.
19.4.06
Durante a Quaresma não se canta Aleluia
Um texto lindíssimo sobre o significado da Quaresma e o singificado da Páscoa, pelo arcebispo de Cantuária.
6.4.06
Festival da canção
Este é o site do Festival Vicarial da Canção da nossa vigararia. Contém não só as letras, mas também ficheiros mp3 gravados no dia do festival. A canção vencedora irá ao Festival Diocesano. Eu participei com a música número 6... que não ganhou prémio nenhum!
23.3.06
Divórcio
Foi apresentada no Parlamento uma proposta legislativa absolutamente peregrina: permitir o divórcio por vontade de um dos cônjuges. Que um contrato se dissolva por comum acordo entre ambas as partes, faz sentido: é o divórcio por comum acordo. (Os cristãos acham que não deve ser assim, de acordo com o ensinamento de Jesus, mas é admissível que faça sentido.) Que se dissolva por incumprimento de uma das partes, faz sentido: é o divórcio litigioso. (O direito canónico sobre tais casos variou e varia muito nas igrejas cristãs do ocidente e do oriente, e nos últimos séculos entre as igrejas reformadas e a igreja romana, e entre as igrejas orientais católicas e as igrejas orientais auto-céfalas. Mas é algo que faz sentido.)
Agora que um contrato se interrompa só porque apetece a uma das partes... Que raio de contrato matrimonial é este?
Agora que um contrato se interrompa só porque apetece a uma das partes... Que raio de contrato matrimonial é este?
20.3.06
III Domingo da Quaresma, ano B
Há dois mil anos, Jesus expulsou do templo de Jerusalém vendedores e cambistas que tornavam o lugar num «covil de ladrões». Hoje em dia, não há mais templo em Jerusalém. O próprio Jesus disse que chegava a hora em que os verdadeiros adoradores adorariam o Pai não mais em Jerusalém (como os judeus), ou em Samaria (como os samaritanos), mas em qualquer lugar (João 4, 21-24). Na verdade, agora Deus habita não num templo feito por mãos de homens (Actos 7, 48-50), mas sim no templo que somos nós (1 Coríntios 6, 19; 1 Pedro 2, 5), pois «o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo» (Romanos 5, 5). E é tempo de purificarmos estes templos, de deles tirarmos tudo o que os torne um covil de ladrões, tudo o que neles seja impróprio de uma «casa de oração para as nações». É tempo de deixarmos Jesus expulsar de nós tudo o que desdiga dessa nossa espantosa dignidade: de uns seres de matéria, pequenas coisas orgânicas num canto do universo, serem imagem, semelhança, morada e semente do divino.
13.3.06
Domingo II da Quaresma - ano B
A primeira leitura é hoje a do sacrifício de Isaac, a propósito do qual escrevi há cinco anos o texto seguinte (aqui um pouco modificado para se adaptar às circunstâncias).
Este texto sobre Abraão e o filho dele Isaac é um bocado difícil de entender. Às vezes até pode parecer que diz coisas horríveis sobre Deus! Mas, pelo contrário, mostra-nos como Deus sempre ajudou toda a humanidade a progredir.
Os deuses de antigamente
Hoje em dia, nós, que já estamos muito habituados à ideia de Deus do cristianismo, ao pensarmos nele provavelmente lembramo-nos de alguém que gosta muito de nós, que ajuda todas as pessoas, que procura os pecadores, etc.. (Às vezes há pessoas que, ao olharem para o mundo e ao verem tantas injustiças e tantos problemas, concluem que ou bem que Deus não existe, porque senão não permitiria um mundo tão horrível; ou bem que Deus é impotente para pôr fim a tanta miséria e tanto sofrimento, e portanto não serve para nada; ou ainda que então é um Deus muito sádico ou completamente indiferente à sorte dos humanos, para deixar que o mundo seja o que é sem intervir. Felizmente, não é nenhuma dessas três coisas que se passa. Mas isso é outra conversa e vai ter de ficar para outra altura. Voltemos à história de Abraão.)
Mas há muito tempo não era propriamente essa a ideia que as pessoas tinham de Deus. (Este "há muito tempo" inclui, como deves estar a imaginar, o tempo de Abraão.) Para começar, a maioria das pessoas até acreditava que havia muitos deuses. Esses deuses não eram, portanto, todo-poderosos (ou omnipotentes, para usar um sinónimo), e tinham geralmente um âmbito algo limitado. Já deves ter ouvido falar dos deuses da mitologia grega e da mitologia romana: havia um deus do trovão, um deus do comércio, um deus da guerra, uma deusa da agricultura, um deus da metalurgia, uma deusa do amor… em suma, uma divindade por cada aspecto diferente da vida humana. Com a revolução urbana, os seres humanos tinham inventado a especialização produtiva, passando a haver uns que eram agricultores, outros que se dedicavam à pastorícia, outros que eram guerreiros, outros que eram artesãos... e depois inventaram deuses à sua imagem e semelhança, também especializados por sectores de actividades! As mitologias dos egípcios, dos povos germânicos e dos indianos também eram (e neste último caso em grande medida ainda são!) mais ou menos do mesmo género.
Cada povo adorava os seus próprios deuses. Não era bem uma questão de cada povo achar que os seus deuses é que eram os "verdadeiros". No fundo, até se admitia que podiam muito bem existir todos. Mas, da mesma forma que os deuses eram limitados na sua actividade, também eram limitados no espaço. Era um bocado como os governos que há nos vários países do mundo: há muitos governos, e todos existem e têm autoridade, mas cada um só manda no território do seu próprio país. Havia deuses de certas montanhas, deuses de certas terras, e claro que quem passava por lá, fosse por que motivo fosse, tinha de os respeitar e de estar em boas relações com eles, senão ainda podia sofrer más consequências. Podia morrer durante a viagem por doença ou atacado por um animal, e isso não era obra do acaso, claro está: tinha sido uma vingança dum deus qualquer que não tinha sido convenientemente "engraxado" e respeitado.
Repara, aliás, que mesmo quando Moisés recebeu os dez mandamentos no monte Sinai, logo o primeiro dizia: "não terás outros deuses diante de mim" (Êxodo 20, 3; Deuteronómio 5, 7). No fundo, nem sequer se estava a afirmar que não houvesse mais; o que se queria dizer era que os israelitas não deviam adorar mais nenhum! Na verdade, aquele deus era um deus estranhamente muito poderoso, porque, sendo o deus dum povo que tinha vindo da Mesopotâmia e que estava a enviar o seu povo para a Palestina, tinha acabado de fazer uma data de milagres no Egipto, que ficava fora do seu território normal de acção. Tinha-se mostrado mais poderoso que os muitos deuses dos egípcios!
De facto, os israelitas eram um povo nómada de pastores, e era mais comum entre os povos de pastores adorar um só deus que entre os povos de agricultores. Só que à medida que os israelitas foram conquistando a Palestina (a terra prometida) e se foram sedentarizando, tornando-se agricultores, deixaram de confiar lá muito nesse mandamento que dizia que só deviam adorar o Senhor, que os tinha tirado do Egipto. Na Palestina já havia outros povos de agricultores, e eles adoravam outros deuses, cujas atribuições eram exactamente enviar chuva, fazer com que as colheitas fossem abundantes, e outras coisas do género muito apropriadas para a agricultura. Logicamente os israelitas começaram a adorar também esses deuses da terra onde se estavam a instalar, não só porque estavam por assim dizer em casa deles como também porque o Senhor, que era um deus do deserto, era capaz de não perceber lá muito de agricultura, como aqueles deuses muito mais apropriados que já eram ali adorados. Os povos da Palestina que já lá viviam continuaram a adorar os seus deuses mas também adoptaram o culto do Senhor (afinal de contas, ele tinha feito várias coisas notáveis no Egipto e no deserto, e era boa ideia também não estar de candeias às avessas com ele). Geralmente, quando há assim povos que se misturam, as religiões seguem o mesmo caminho e foi isso que aconteceu. Se leres na Bíblia os livros dos Juizes, de Samuel e dos Reis verás que os israelitas sempre passaram o tempo todo sem saber muito bem se haviam de adorar só o Senhor ou se haviam de adoptar uma postura mais ecléctica.
(E, já agora, quanto à questão de haver outros deuses, havia quem, noutros povos, também admitisse que o Senhor era mesmo um deus. Quando o imperador Ciro da Pérsia decidiu deixar reconstruir Jerusalém, disse: «O Senhor, o Deus do céu, fez-me governante do mundo todo e deu-me a responsabilidade de lhe construir um templo em Jerusalém da Judeia» (Esdras 1, 2). Há várias outras passagens da Bíblia onde se vêem estrangeiros a tomar essa atitude, de admitir o culto do Senhor ao mesmo tempo que o dos outros deuses. Foi só por alturas do cativeiro em Babilónia, no século 6 antes de Cristo, que foi surgindo a revelação segundo a qual "o Senhor, que governa e protege Israel, o Senhor todo-poderoso, tem isto a dizer: 'Eu sou o primeiro e o último, o único Deus; não há nenhum deus para além de mim'" (Isaías 44, 6).)
E quanto à maneira de ser dos (muitos) deuses de antigamente: as divindades não eram propriamente muito simpáticas. A prova disso é que passava o tempo todo a haver doenças, fomes, inundações, secas, pragas de gafanhotos, terramotos, ataques de animais selvagens, infertilidade do gado, e montes de outros sinais de que havia sempre pelo menos um deus qualquer zangado. Se não estivesse zangado também não havia de deixar que aquilo acontecesse! E portanto, para ver se não aconteciam essas coisas, o que era preciso era tentar subornar o deus respectivo para ver se ele ficava contente. Geralmente rezar não bastava. Há pessoas que não ficam contentes só por ouvirem dizer "por favor" e precisam de alguma coisa mais. Os deuses, que eram tão importantes, certamente que também eram assim. Por isso se lhes ofereciam imensas coisas. Para começar, as primícias das colheitas ou do gado. Depois, também animais. Como os deuses não comiam os animais que lhes eram sacrificados, adoptou-se frequentemente a prática de os queimar em sacrifício. Esse género de sacrifício era conhecido por holocausto (ou oferta queimada, se preferes uma expressão mais fácil de entender). E alguns deuses eram mesmo exigentes e queriam não só plantas e animais mas também vidas humanas. Às vezes isso era desculpa para as pessoas se verem livres dos criminosos ou dos prisioneiros de guerra: havia uma divindade qualquer que queria que eles fossem mortos, e por isso executavam-nos. Mas havia deuses mais exigentes que não se contentavam com a morte de estranhos: para alguém provar mesmo a sua devoção tinha de matar alguém da família. Geralmente era um filho ou uma filha: nessa altura o controlo da natalidade não era lá muito desenvolvido e, se por um lado isso às vezes era necessário porque a mortalidade infantil era alta e se não houvesse muitos filhos poucos chegariam à idade adulta, por outro acontecia muitas vezes que os pais não tinham que lhes dar de comer, e assim matar um filho não era uma coisa por aí além. Mais um ou menos um numa prole de mais de uma dúzia (e há casos de mulheres que tinham muito mais que uma dúzia de filhos - como imaginas para os homens ainda era mais fácil ter mais filhos) pode não ser uma diferença por aí além. E mesmo que seja, apaziguar um deus importante vale a pena. Havia casos em que quem ia morrer ia muito contente por ter uma honra tão grande.
Só por curiosidade, na Palestina adoravam-se deuses assim, e quando os israelitas lhes começaram a prestar culto também adoptaram essas práticas (que o Senhor nunca aprovou). Foi preciso incluir na lei do Senhor a seguinte ordem: "não sacrifiquem os vossos filhos como holocaustos nos vossos altares" (Deuteronómio 18, 10). O rei dos moabitas, que eram um povo que tinha fronteira com os israelitas, duma vez que foi atacado e estava cercado numa cidade, vendo que estava quase a perder a guerra, "tomou o seu filho mais velho, que havia de lhe suceder no trono, e ofereceu-o sobre as muralhas em sacrifício ao deus de Moab" (2 Reis 3, 27). O rei Manassés de Judá também fez o mesmo uns anos mais tarde e "sacrificou o filho dele em holocausto" (2 Reis 21, 6). O neto dele, o rei Josias, que defendeu a política de ter como religião oficial do reino de Judá unicamente o culto do Senhor, teve de destruir um santuário "no vale de Hinom, para que ninguém pudesse sacrificar o seu filho ou a sua filha como holocausto ao deus Moloc" (2 Reis 23, 10), que era um dos tais deuses que gostava de sacrifícios humanos.
Quem era Isaac?
Para entendermos bem esta passagem da Bíblia sobre Abraão e Isaac também temos de saber quem era Isaac.
Abraão chegou a idade avançada sem ter filhos, e quando conseguiu ter um foi duma concubina chamada Agar e não da mulher principal dele (porque naquele tempo havia poligamia). Esse filho foi Ismael. Então o Senhor prometeu a Abraão: "A tua mulher Sara há-de dar-te um filho e tu hás-de chamar-lhe Isaac. Vou manter a minha aliança com ele e com os descendentes dele para sempre." (Génesis 17, 19) E na verdade "Sara ficou grávida e deu à luz um filho a Abraão quando ele era velho. O rapaz nasceu quando Deus tinha dito que ele ia nascer" (Génesis 21, 2). Como podes imaginar, Abraão gostava muito do seu filho Isaac. E ainda passou a gostar mais quando a mulher dele, Sara, se zangou com a concubina Agar e conseguiu que a rival fosse expulsa juntamente com o filho Ismael. Nessa altura Isaac passou a ser o único filho que lhe sobrava.
Deus tentou enganar Abraão?
Vamos então tentar perceber o que nos diz o texto. Começa logo por dizer que Deus pôs Abraão à prova. Será verdade? Será que Deus anda assim também a meter-nos ciladas à nossa frente só para ver como é que nós reagimos? E depois se não fazemos o que ele manda? Será que fica zangado?
Pode ajudar-nos a perceber isso um outro passo da Bíblia, já do Novo Testamento, em que Tiago nos diz: "Felizes são aqueles que permanecem fiéis durante as provações, porque quando conseguirem passar esse teste hão-de receber como recompensa a vida que Deus prometeu àqueles que o amam. Se formos tentados com essas provas, não devemos dizer: 'esta tentação vem de Deus'. Porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e ele próprio não tenta ninguém. Mas nós somos tentados quando somos levados e apanhados pelos nossos próprios maus desejos." (Tiago 1, 12-14)
Portanto, não foi com certeza Deus que pôs Abraão à prova dizendo-lhe que fosse sacrificar o filho dele. O livro do Génesis diz o contrário, interpretado à letra; mas isso é só porque foi escrito há muitos séculos, num ambiente cultural diferente, quando ainda não havia a plena consciência de como é que Deus verdadeiramente é, coisa que só Jesus é que nos revelou verdadeiramente: "nunca ninguém viu Deus; o único Filho, que é igual a Deus e está ao lado do pai, é que o deu a conhecer" (João 1, 18). Portanto, Abraão deve ter ficado com a ideia de que a divindade lhe exigia que sacrificasse o filho por isso ser uma ideia generalizada na altura. Ele estava a viajar numa terra que não era a dele, porque ele vinha da Mesopotâmia; a vida não era fácil naqueles tempos; e não há dúvida de que naquela zona havia o hábito de sacrificar um filho a uma divindade. Abraão, por algum motivo, seguindo o pensamento corrente na altura dele, convenceu-se de que devia fazer o mesmo. Aparentemente não era hábito fazer isso de onde ele vinha; tanto assim que Isaac só percebeu o que é que lhe ia acontecer mesmo no fim, tendo perguntado ao pai pelo cordeiro (a única coisa que ele provavelmente já tinha visto sacrificar). O facto de Abraão ter ido ao cimo de uma montanha para sacrificar o filho também é significativo: devia ser o sítio onde, naquela região, era costume fazer sacrifícios do género. É que as montanhas sempre se prestaram muito ao culto das divindades celestes, porque são locais onde se está mais perto do céu. (Pensa que, na Mesopotâmia, onde o terreno é plano, os Sumérios se deram ao trabalho de construir uma espécie de montanhas artificiais, os zigurates, para fazerem templos lá em cima.)
Dalgum modo Abraão percebeu, quando estava quase a matar aquele filho que muito amava, que na verdade não era isso que Deus queria dele. Não devemos imaginar que um anjo lhe tenha segurado a manga, como se vê em muitos quadros antigos! A voz do anjo que a Bíblia refere foi, muito provavelmente, uma voz interior, na consciência dele. Talvez Abraão o tenha percebido ao encontrar o carneiro preso num arbusto, que parecia mesmo ter sido ali posto de propósito pelo próprio deus daquele monte para ser oferecido em sacrifício. Na verdade, se tinha sido já um grande dom de Deus que Isaac tivesse nascido, que sentido fazia agora matá-lo? Abraão, no seu amor pelo seu filho, percebeu que a Deus não aproveita nada a morte de ninguém como sacrifício, e assim se eliminou, do meio do povo que descendeu dele, o dos hebreus, essa prática horrível de outros tempos de sacrificar vidas humanas.
(Só por curiosidade, o anjo do Senhor que chama Abraão do céu é o próprio Senhor. Nos textos mais antigos da Bíblia não há ainda uma noção desenvolvida acerca da existência de vários anjos que são como que uns serviçais de Deus. Assim, quando se falava do anjo do Senhor, isso era uma maneira de se referir ao próprio. Repara que o anjo do Senhor, no fim do texto, fala como se fosse Deus. Isso é porque é mesmo ele! Só com o correr dos séculos é que se foi desenvolvendo a ideia da corte celeste com vários seres diferentes que obedecem a Deus - e outros que não obedecem, tendo depois surgido daí a ideia do diabo, ideia que nesta altura ainda não existia. Mas isso é outra história cujos pormenores ficam para outra ocasião.)
O novo Isaac
Existe na Bíblia uma outra pessoa que, tal como Isaac, sem ter culpa nenhuma, foi levado para ser morto como sacrifício. Mas essa pessoa acabou mesmo por morrer, e, se no fim viveu, foi porque Deus o ressuscitou dos mortos. É claro que essa pessoa foi Jesus.
Num certo sentido, assim, Isaac foi como que uma imagem de Jesus. Ele também transportou a madeira em que foi sacrificado, a madeira da cruz; também se deixou prender sem ter feito mal nenhum; e, se Isaac não foi sacrificado porque Deus arranjou outra vítima, um carneiro, para o lugar dele, Jesus foi mesmo sacrificado, porque ele é "o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (João 1, 29) que Deus nos oferece como "meio pelo qual os nossos pecados são perdoados, e não só os nossos, mas também os pecados de todas as pessoas" (1 João 2, 2).
Sim, na verdade "o amor é isto: não fomos nós que amámos Deus, mas sim ele que nos amou a nós e enviou o seu Filho para ser o meio pelo qual os nossos pecados são perdoados" (1 João 4, 10). Como disse S. Pedro, "Cristo sofreu por vocês e deu-vos o exemplo, para que seguissem os passos dele. Ele não cometeu pecado nenhum, e nunca ninguém lhe ouviu uma mentira dos lábios. Quando foi insultado, não respondeu com outro insulto; quando sofreu, não ameaçou, mas pôs a esperança dele em Deus, o justo juíz. O próprio Cristo levou os nossos pecados no seu corpo para a cruz, para que pudéssemos morrer para o pecado e viver para a justiça" (1 Pedro 2, 21-24).
Assim se cumpriu o que estava predito na profecia de Isaías: "Ele foi duramente tratado, mas suportou isso com humildade; nunca disse uma palavra. Como um cordeiro que vai para o matadouro, como uma ovelha que vai ser abatida, ele nunca disse uma palavra. Foi preso e condenado e conduzido à execução, e ninguém se importou com a sorte dele. Foi sepultado juntamente com os maus, foi enterrado com os ricos, embora nunca tivesse cometido um crime ou sequer dito uma mentira. O Senhor diz: 'Foi da minha vontade que ele sofresse; a morte dele foi um sacrifício para trazer o perdão. E assim ele verá os seus descendentes; ele viverá uma longa vida, e por meio dele os meus propósitos serão realizados.'" (Isaías 53, 7-10)
Estes versículos são parte duma leitura que se faz todos os anos na Sexta-feira Santa, por se referirem à morte de Jesus, que sofreu, sem nenhuma razão para isso, como sacrifício pelos nossos pecados. Na Vigília Pascal, lê-se a leitura do sacrifício de Isaac, que foi como que uma prefiguração da salvação de Jesus, desse cordeiro que Deus, que não quer "ver a morte dos pecadores", mas sim "vê-los a arrepender-se e viver" (Ezequiel 18, 23), providenciou para, em vez de nós, expiar os nossos pecados.
Este texto sobre Abraão e o filho dele Isaac é um bocado difícil de entender. Às vezes até pode parecer que diz coisas horríveis sobre Deus! Mas, pelo contrário, mostra-nos como Deus sempre ajudou toda a humanidade a progredir.
Os deuses de antigamente
Hoje em dia, nós, que já estamos muito habituados à ideia de Deus do cristianismo, ao pensarmos nele provavelmente lembramo-nos de alguém que gosta muito de nós, que ajuda todas as pessoas, que procura os pecadores, etc.. (Às vezes há pessoas que, ao olharem para o mundo e ao verem tantas injustiças e tantos problemas, concluem que ou bem que Deus não existe, porque senão não permitiria um mundo tão horrível; ou bem que Deus é impotente para pôr fim a tanta miséria e tanto sofrimento, e portanto não serve para nada; ou ainda que então é um Deus muito sádico ou completamente indiferente à sorte dos humanos, para deixar que o mundo seja o que é sem intervir. Felizmente, não é nenhuma dessas três coisas que se passa. Mas isso é outra conversa e vai ter de ficar para outra altura. Voltemos à história de Abraão.)
Mas há muito tempo não era propriamente essa a ideia que as pessoas tinham de Deus. (Este "há muito tempo" inclui, como deves estar a imaginar, o tempo de Abraão.) Para começar, a maioria das pessoas até acreditava que havia muitos deuses. Esses deuses não eram, portanto, todo-poderosos (ou omnipotentes, para usar um sinónimo), e tinham geralmente um âmbito algo limitado. Já deves ter ouvido falar dos deuses da mitologia grega e da mitologia romana: havia um deus do trovão, um deus do comércio, um deus da guerra, uma deusa da agricultura, um deus da metalurgia, uma deusa do amor… em suma, uma divindade por cada aspecto diferente da vida humana. Com a revolução urbana, os seres humanos tinham inventado a especialização produtiva, passando a haver uns que eram agricultores, outros que se dedicavam à pastorícia, outros que eram guerreiros, outros que eram artesãos... e depois inventaram deuses à sua imagem e semelhança, também especializados por sectores de actividades! As mitologias dos egípcios, dos povos germânicos e dos indianos também eram (e neste último caso em grande medida ainda são!) mais ou menos do mesmo género.
Cada povo adorava os seus próprios deuses. Não era bem uma questão de cada povo achar que os seus deuses é que eram os "verdadeiros". No fundo, até se admitia que podiam muito bem existir todos. Mas, da mesma forma que os deuses eram limitados na sua actividade, também eram limitados no espaço. Era um bocado como os governos que há nos vários países do mundo: há muitos governos, e todos existem e têm autoridade, mas cada um só manda no território do seu próprio país. Havia deuses de certas montanhas, deuses de certas terras, e claro que quem passava por lá, fosse por que motivo fosse, tinha de os respeitar e de estar em boas relações com eles, senão ainda podia sofrer más consequências. Podia morrer durante a viagem por doença ou atacado por um animal, e isso não era obra do acaso, claro está: tinha sido uma vingança dum deus qualquer que não tinha sido convenientemente "engraxado" e respeitado.
Repara, aliás, que mesmo quando Moisés recebeu os dez mandamentos no monte Sinai, logo o primeiro dizia: "não terás outros deuses diante de mim" (Êxodo 20, 3; Deuteronómio 5, 7). No fundo, nem sequer se estava a afirmar que não houvesse mais; o que se queria dizer era que os israelitas não deviam adorar mais nenhum! Na verdade, aquele deus era um deus estranhamente muito poderoso, porque, sendo o deus dum povo que tinha vindo da Mesopotâmia e que estava a enviar o seu povo para a Palestina, tinha acabado de fazer uma data de milagres no Egipto, que ficava fora do seu território normal de acção. Tinha-se mostrado mais poderoso que os muitos deuses dos egípcios!
De facto, os israelitas eram um povo nómada de pastores, e era mais comum entre os povos de pastores adorar um só deus que entre os povos de agricultores. Só que à medida que os israelitas foram conquistando a Palestina (a terra prometida) e se foram sedentarizando, tornando-se agricultores, deixaram de confiar lá muito nesse mandamento que dizia que só deviam adorar o Senhor, que os tinha tirado do Egipto. Na Palestina já havia outros povos de agricultores, e eles adoravam outros deuses, cujas atribuições eram exactamente enviar chuva, fazer com que as colheitas fossem abundantes, e outras coisas do género muito apropriadas para a agricultura. Logicamente os israelitas começaram a adorar também esses deuses da terra onde se estavam a instalar, não só porque estavam por assim dizer em casa deles como também porque o Senhor, que era um deus do deserto, era capaz de não perceber lá muito de agricultura, como aqueles deuses muito mais apropriados que já eram ali adorados. Os povos da Palestina que já lá viviam continuaram a adorar os seus deuses mas também adoptaram o culto do Senhor (afinal de contas, ele tinha feito várias coisas notáveis no Egipto e no deserto, e era boa ideia também não estar de candeias às avessas com ele). Geralmente, quando há assim povos que se misturam, as religiões seguem o mesmo caminho e foi isso que aconteceu. Se leres na Bíblia os livros dos Juizes, de Samuel e dos Reis verás que os israelitas sempre passaram o tempo todo sem saber muito bem se haviam de adorar só o Senhor ou se haviam de adoptar uma postura mais ecléctica.
(E, já agora, quanto à questão de haver outros deuses, havia quem, noutros povos, também admitisse que o Senhor era mesmo um deus. Quando o imperador Ciro da Pérsia decidiu deixar reconstruir Jerusalém, disse: «O Senhor, o Deus do céu, fez-me governante do mundo todo e deu-me a responsabilidade de lhe construir um templo em Jerusalém da Judeia» (Esdras 1, 2). Há várias outras passagens da Bíblia onde se vêem estrangeiros a tomar essa atitude, de admitir o culto do Senhor ao mesmo tempo que o dos outros deuses. Foi só por alturas do cativeiro em Babilónia, no século 6 antes de Cristo, que foi surgindo a revelação segundo a qual "o Senhor, que governa e protege Israel, o Senhor todo-poderoso, tem isto a dizer: 'Eu sou o primeiro e o último, o único Deus; não há nenhum deus para além de mim'" (Isaías 44, 6).)
E quanto à maneira de ser dos (muitos) deuses de antigamente: as divindades não eram propriamente muito simpáticas. A prova disso é que passava o tempo todo a haver doenças, fomes, inundações, secas, pragas de gafanhotos, terramotos, ataques de animais selvagens, infertilidade do gado, e montes de outros sinais de que havia sempre pelo menos um deus qualquer zangado. Se não estivesse zangado também não havia de deixar que aquilo acontecesse! E portanto, para ver se não aconteciam essas coisas, o que era preciso era tentar subornar o deus respectivo para ver se ele ficava contente. Geralmente rezar não bastava. Há pessoas que não ficam contentes só por ouvirem dizer "por favor" e precisam de alguma coisa mais. Os deuses, que eram tão importantes, certamente que também eram assim. Por isso se lhes ofereciam imensas coisas. Para começar, as primícias das colheitas ou do gado. Depois, também animais. Como os deuses não comiam os animais que lhes eram sacrificados, adoptou-se frequentemente a prática de os queimar em sacrifício. Esse género de sacrifício era conhecido por holocausto (ou oferta queimada, se preferes uma expressão mais fácil de entender). E alguns deuses eram mesmo exigentes e queriam não só plantas e animais mas também vidas humanas. Às vezes isso era desculpa para as pessoas se verem livres dos criminosos ou dos prisioneiros de guerra: havia uma divindade qualquer que queria que eles fossem mortos, e por isso executavam-nos. Mas havia deuses mais exigentes que não se contentavam com a morte de estranhos: para alguém provar mesmo a sua devoção tinha de matar alguém da família. Geralmente era um filho ou uma filha: nessa altura o controlo da natalidade não era lá muito desenvolvido e, se por um lado isso às vezes era necessário porque a mortalidade infantil era alta e se não houvesse muitos filhos poucos chegariam à idade adulta, por outro acontecia muitas vezes que os pais não tinham que lhes dar de comer, e assim matar um filho não era uma coisa por aí além. Mais um ou menos um numa prole de mais de uma dúzia (e há casos de mulheres que tinham muito mais que uma dúzia de filhos - como imaginas para os homens ainda era mais fácil ter mais filhos) pode não ser uma diferença por aí além. E mesmo que seja, apaziguar um deus importante vale a pena. Havia casos em que quem ia morrer ia muito contente por ter uma honra tão grande.
Só por curiosidade, na Palestina adoravam-se deuses assim, e quando os israelitas lhes começaram a prestar culto também adoptaram essas práticas (que o Senhor nunca aprovou). Foi preciso incluir na lei do Senhor a seguinte ordem: "não sacrifiquem os vossos filhos como holocaustos nos vossos altares" (Deuteronómio 18, 10). O rei dos moabitas, que eram um povo que tinha fronteira com os israelitas, duma vez que foi atacado e estava cercado numa cidade, vendo que estava quase a perder a guerra, "tomou o seu filho mais velho, que havia de lhe suceder no trono, e ofereceu-o sobre as muralhas em sacrifício ao deus de Moab" (2 Reis 3, 27). O rei Manassés de Judá também fez o mesmo uns anos mais tarde e "sacrificou o filho dele em holocausto" (2 Reis 21, 6). O neto dele, o rei Josias, que defendeu a política de ter como religião oficial do reino de Judá unicamente o culto do Senhor, teve de destruir um santuário "no vale de Hinom, para que ninguém pudesse sacrificar o seu filho ou a sua filha como holocausto ao deus Moloc" (2 Reis 23, 10), que era um dos tais deuses que gostava de sacrifícios humanos.
Quem era Isaac?
Para entendermos bem esta passagem da Bíblia sobre Abraão e Isaac também temos de saber quem era Isaac.
Abraão chegou a idade avançada sem ter filhos, e quando conseguiu ter um foi duma concubina chamada Agar e não da mulher principal dele (porque naquele tempo havia poligamia). Esse filho foi Ismael. Então o Senhor prometeu a Abraão: "A tua mulher Sara há-de dar-te um filho e tu hás-de chamar-lhe Isaac. Vou manter a minha aliança com ele e com os descendentes dele para sempre." (Génesis 17, 19) E na verdade "Sara ficou grávida e deu à luz um filho a Abraão quando ele era velho. O rapaz nasceu quando Deus tinha dito que ele ia nascer" (Génesis 21, 2). Como podes imaginar, Abraão gostava muito do seu filho Isaac. E ainda passou a gostar mais quando a mulher dele, Sara, se zangou com a concubina Agar e conseguiu que a rival fosse expulsa juntamente com o filho Ismael. Nessa altura Isaac passou a ser o único filho que lhe sobrava.
Deus tentou enganar Abraão?
Vamos então tentar perceber o que nos diz o texto. Começa logo por dizer que Deus pôs Abraão à prova. Será verdade? Será que Deus anda assim também a meter-nos ciladas à nossa frente só para ver como é que nós reagimos? E depois se não fazemos o que ele manda? Será que fica zangado?
Pode ajudar-nos a perceber isso um outro passo da Bíblia, já do Novo Testamento, em que Tiago nos diz: "Felizes são aqueles que permanecem fiéis durante as provações, porque quando conseguirem passar esse teste hão-de receber como recompensa a vida que Deus prometeu àqueles que o amam. Se formos tentados com essas provas, não devemos dizer: 'esta tentação vem de Deus'. Porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e ele próprio não tenta ninguém. Mas nós somos tentados quando somos levados e apanhados pelos nossos próprios maus desejos." (Tiago 1, 12-14)
Portanto, não foi com certeza Deus que pôs Abraão à prova dizendo-lhe que fosse sacrificar o filho dele. O livro do Génesis diz o contrário, interpretado à letra; mas isso é só porque foi escrito há muitos séculos, num ambiente cultural diferente, quando ainda não havia a plena consciência de como é que Deus verdadeiramente é, coisa que só Jesus é que nos revelou verdadeiramente: "nunca ninguém viu Deus; o único Filho, que é igual a Deus e está ao lado do pai, é que o deu a conhecer" (João 1, 18). Portanto, Abraão deve ter ficado com a ideia de que a divindade lhe exigia que sacrificasse o filho por isso ser uma ideia generalizada na altura. Ele estava a viajar numa terra que não era a dele, porque ele vinha da Mesopotâmia; a vida não era fácil naqueles tempos; e não há dúvida de que naquela zona havia o hábito de sacrificar um filho a uma divindade. Abraão, por algum motivo, seguindo o pensamento corrente na altura dele, convenceu-se de que devia fazer o mesmo. Aparentemente não era hábito fazer isso de onde ele vinha; tanto assim que Isaac só percebeu o que é que lhe ia acontecer mesmo no fim, tendo perguntado ao pai pelo cordeiro (a única coisa que ele provavelmente já tinha visto sacrificar). O facto de Abraão ter ido ao cimo de uma montanha para sacrificar o filho também é significativo: devia ser o sítio onde, naquela região, era costume fazer sacrifícios do género. É que as montanhas sempre se prestaram muito ao culto das divindades celestes, porque são locais onde se está mais perto do céu. (Pensa que, na Mesopotâmia, onde o terreno é plano, os Sumérios se deram ao trabalho de construir uma espécie de montanhas artificiais, os zigurates, para fazerem templos lá em cima.)
Dalgum modo Abraão percebeu, quando estava quase a matar aquele filho que muito amava, que na verdade não era isso que Deus queria dele. Não devemos imaginar que um anjo lhe tenha segurado a manga, como se vê em muitos quadros antigos! A voz do anjo que a Bíblia refere foi, muito provavelmente, uma voz interior, na consciência dele. Talvez Abraão o tenha percebido ao encontrar o carneiro preso num arbusto, que parecia mesmo ter sido ali posto de propósito pelo próprio deus daquele monte para ser oferecido em sacrifício. Na verdade, se tinha sido já um grande dom de Deus que Isaac tivesse nascido, que sentido fazia agora matá-lo? Abraão, no seu amor pelo seu filho, percebeu que a Deus não aproveita nada a morte de ninguém como sacrifício, e assim se eliminou, do meio do povo que descendeu dele, o dos hebreus, essa prática horrível de outros tempos de sacrificar vidas humanas.
(Só por curiosidade, o anjo do Senhor que chama Abraão do céu é o próprio Senhor. Nos textos mais antigos da Bíblia não há ainda uma noção desenvolvida acerca da existência de vários anjos que são como que uns serviçais de Deus. Assim, quando se falava do anjo do Senhor, isso era uma maneira de se referir ao próprio. Repara que o anjo do Senhor, no fim do texto, fala como se fosse Deus. Isso é porque é mesmo ele! Só com o correr dos séculos é que se foi desenvolvendo a ideia da corte celeste com vários seres diferentes que obedecem a Deus - e outros que não obedecem, tendo depois surgido daí a ideia do diabo, ideia que nesta altura ainda não existia. Mas isso é outra história cujos pormenores ficam para outra ocasião.)
O novo Isaac
Existe na Bíblia uma outra pessoa que, tal como Isaac, sem ter culpa nenhuma, foi levado para ser morto como sacrifício. Mas essa pessoa acabou mesmo por morrer, e, se no fim viveu, foi porque Deus o ressuscitou dos mortos. É claro que essa pessoa foi Jesus.
Num certo sentido, assim, Isaac foi como que uma imagem de Jesus. Ele também transportou a madeira em que foi sacrificado, a madeira da cruz; também se deixou prender sem ter feito mal nenhum; e, se Isaac não foi sacrificado porque Deus arranjou outra vítima, um carneiro, para o lugar dele, Jesus foi mesmo sacrificado, porque ele é "o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (João 1, 29) que Deus nos oferece como "meio pelo qual os nossos pecados são perdoados, e não só os nossos, mas também os pecados de todas as pessoas" (1 João 2, 2).
Sim, na verdade "o amor é isto: não fomos nós que amámos Deus, mas sim ele que nos amou a nós e enviou o seu Filho para ser o meio pelo qual os nossos pecados são perdoados" (1 João 4, 10). Como disse S. Pedro, "Cristo sofreu por vocês e deu-vos o exemplo, para que seguissem os passos dele. Ele não cometeu pecado nenhum, e nunca ninguém lhe ouviu uma mentira dos lábios. Quando foi insultado, não respondeu com outro insulto; quando sofreu, não ameaçou, mas pôs a esperança dele em Deus, o justo juíz. O próprio Cristo levou os nossos pecados no seu corpo para a cruz, para que pudéssemos morrer para o pecado e viver para a justiça" (1 Pedro 2, 21-24).
Assim se cumpriu o que estava predito na profecia de Isaías: "Ele foi duramente tratado, mas suportou isso com humildade; nunca disse uma palavra. Como um cordeiro que vai para o matadouro, como uma ovelha que vai ser abatida, ele nunca disse uma palavra. Foi preso e condenado e conduzido à execução, e ninguém se importou com a sorte dele. Foi sepultado juntamente com os maus, foi enterrado com os ricos, embora nunca tivesse cometido um crime ou sequer dito uma mentira. O Senhor diz: 'Foi da minha vontade que ele sofresse; a morte dele foi um sacrifício para trazer o perdão. E assim ele verá os seus descendentes; ele viverá uma longa vida, e por meio dele os meus propósitos serão realizados.'" (Isaías 53, 7-10)
Estes versículos são parte duma leitura que se faz todos os anos na Sexta-feira Santa, por se referirem à morte de Jesus, que sofreu, sem nenhuma razão para isso, como sacrifício pelos nossos pecados. Na Vigília Pascal, lê-se a leitura do sacrifício de Isaac, que foi como que uma prefiguração da salvação de Jesus, desse cordeiro que Deus, que não quer "ver a morte dos pecadores", mas sim "vê-los a arrepender-se e viver" (Ezequiel 18, 23), providenciou para, em vez de nós, expiar os nossos pecados.
1.2.06
Sobre a homossexualidade
João César das Neves escreveu anteontem no DN uma crónica sobre o assunto, que me parece uma bela reflexão digna de consideração (coisa que frequentemente não posso dizer dos artigos dele). Chama-me a atenção o seu argumento de que, nas sociedades onde a homossexualidade foi tolerada e até mesmo corrente, nunca se considerou como algo equivalente ao matrimónio.
E no mesmo dia duas senhoras apareceram na televisão afirmando que se querem casar. O seu advogado diz que o Código Civil não pode estatuir que o casamento tem de ser entre duas pessoas de sexo oposto: o problema aqui será a expressão de sexo oposto, que contrariará a disposição constitucional de não discriminar com base na orientação sexual. Se assim fosse, a expressão entre duas pessoas também seria inconstitucional: e então aqueles cuja orientação sexual os leva a ter múltiplos parceiros? E não se trata de nenhuma depravação moderna: vejam-se os casos dos muçulmanos (que admitem a poligamia), de muitas sociedades africanas (que também a admitem), de algumas dos Himalaias (que admitem a poliandria)... para não falar dos mórmones do século XIX (e de algumas seitas mórmones até hoje), dos anabaptistas alemães do tempo da Reforma ou dos hebreus de antes do cativeiro em Babilónia... Teríamos de acabar por definir o matrimónio como um contrato entre um número qualquer de pessoas independentemente do seu sexo...
E no mesmo dia duas senhoras apareceram na televisão afirmando que se querem casar. O seu advogado diz que o Código Civil não pode estatuir que o casamento tem de ser entre duas pessoas de sexo oposto: o problema aqui será a expressão de sexo oposto, que contrariará a disposição constitucional de não discriminar com base na orientação sexual. Se assim fosse, a expressão entre duas pessoas também seria inconstitucional: e então aqueles cuja orientação sexual os leva a ter múltiplos parceiros? E não se trata de nenhuma depravação moderna: vejam-se os casos dos muçulmanos (que admitem a poligamia), de muitas sociedades africanas (que também a admitem), de algumas dos Himalaias (que admitem a poliandria)... para não falar dos mórmones do século XIX (e de algumas seitas mórmones até hoje), dos anabaptistas alemães do tempo da Reforma ou dos hebreus de antes do cativeiro em Babilónia... Teríamos de acabar por definir o matrimónio como um contrato entre um número qualquer de pessoas independentemente do seu sexo...